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quarta-feira, 6 de março de 2013

A NOITE DAS ÁGUAS DE MARÇO 5 DE 2013

Ontem à noite, deixei de ser audaz motorista, pois já corri em autodrómos em minha juventude, e me tornei audaz navegante, me sentindo um Pedro Álvares Cabral que chegasse ao Rio por terra em dia de chuvas torrenciais. Eram cerca de vinte horas. Eu deixava o câmpus do Rio Comprido, na Rua do Bispo. A chuva era tanta que as pessoas se abrigavam onde podiam, pois a parte coberta não era suficiente proteção, uma vez que o vento trazia a água pela frente, pelos fundos, por todos os lados. Na companhia de alguns professores e alunos que já tinham chegado para o terceiro turno, fui para uma papelaria. Sempre digo que o governo inverte a expressão "estudantes que trabalham". Eles são "trabalhadores que estudam". Sei disso porque já fui um deles. Logo a água entrou na papelaria também, e os funcionários passaram a colocar em lugares mais altos os objetos que estavam nas prateleiras de baixo, pois as águas são analfabetas e só frequentam escolas e universidades nessas horas. E sem vestibular! Com fazia a polícia nos tempos da ditadura quando invadia os câmpus. Resolvi sair do abrigo e enfrentar a chuva. Disse que meu carro estava a poucos metros dali e ofereci carona a três pessoas. Nenhuma delas quis. Seus olhos de espanto me chamavam de louco. Desconheciam meu passado inconfessável de alguém que aprendeu a dirigir em escorregadias estradas de barro no Brasil meridional. Eu não era e não sou imprudente. Mas entre ficar parado e tomar uma decisão, sempre há o que fazer. Nem que seja decidir ficar onde está. Começavam a se formar imensas cachoeiras nos dois lados da rua do Bispo. Meu carro estava na garagem em frente. O trânsito parou. Antevi o pior: ficar isolado ali. Atravessei a rua com água pelo meio das canelas, e pelo joelho no outro lado da rua, ao chegar ao estacionamento. Mas isso não era o pior. Devido ao horário, os caminhões ainda não tinham recolhido o lixo, e os sacos pareciam desjeitosos barcos redondos procurando entre as águas o melhor caminho. E o melhor caminho era bater em mim. Molhado dos pés à cabeça, paguei o estacionamento. O atendente estava molhado dentro da guarita. A água entrava também ali. Quando saí à rua, vi tudo fácil. De medo, os motoristas paravam seus carros no meio da rua, o que me facilitou a ultrapassagem. Tomei o cuidado de deixar o lado esquerdo do carro rente à calçada: assim a tração seria feita pela roda dianteira direita, que estava na parte da rua com menos água, ainda que a esquerda servisse mais de leme do que de roda. Viajei ou melhor naveguei sozinho por um longo trecho, com muito cuidado, luzes de emergência piscando e os faróis de neblina acesos, pois alguns carros vinham na contramão. Adiante, os dois trechos do túnel estavam vazios. Na Lagoa, os motoristas mais cuidadosos ou mais prudentes estavam parados, o que me obrigou a ultrapassá-los pela parte mais difícil, de novo com duas das rodas sobre o meio-fio. A essa altura, eu passei a ter companhia de outros dois carros. Depois da Lagoa o trânsito estava com poucos veículos e fluía normalmente, enquanto eu ouvia a voz terna e doce de nossa querida Mariana atendendo aos ouvintes, colhendo depoimentos, entrevistando o prefeito Eduardo Paes, pedindo ao empresário que informara ter visto e filmado um ônibus ilhado com os passageiros sobre o teto se ele podia identificar de que empresa era o veículo, com o fim de que a Band pudesse ser mais objetiva no pedido de socorro etc. Não é meu costume elogiar autoridades porque elas me dão poucos motivos para isso, mas tenho notado que o prefeito está sempre presente no centro de operações nessas horas para fazer aquilo que um dia Eça de Queiroz disse do Canal de Suez: aqui a mão do homem corrige a natureza. Sim, estamos corrigindo a natureza, mas pelo jeito ainda vai demorar. Só me pareceu engraçada a recomendação de não sair de cada. Meu problema era chegar em casa! Mas cheguei! Eram cerca de 21h30. Entrei pela lavanderia, deixei as roupas ali e fui direto para o chuveiro. Na sala me esperavam minha amada e um conhaque com limão, açúcar e mel. E, como nos contos de fada, depois de muitas peripécias, houve um final feliz. Fui dormir muito tarde, já menos tenso por saber que não havia mortos nem feridos, o que, nessas horas, já é um bom recomeço. "Há braços" pra vocês! (xx)

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