NOME DE POBRE NO BRASIL

sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

A MEDIDA QUE NOS MEDIRÁ EM 2011

Faz mais de 2500 anos que o filósofo grego Pitágoras disse que “o homem é a medida de todas as coisas”.
O homem começou usando a si mesmo para medir a extensão daquilo que o rodeava. Polegada, dedo, palmo, mão, pé, braço, côvado, punhado etc.
Foram tão fortes essas medidas que ainda hoje, em plena era tecnológica e numa sociedade high tech, damos de cara com elas. O avião está a tantos pés de altura. A telinha da televisão e a do computador são medidas por polegadas.
No momento, escrevo esta coluna num notebook cuja tela é de 16,1 polegadas. É nela que vejo surgirem, luminosos, os dois dedos de prosa que mantenho com vocês toda semana. Para ligar a máquina, usei uma senha digital: passei meu dedo num sensor. E enquanto escrevo, o cursor, antigo escravo romano que seguia o dono pelas ruas da antiga Roma, segue as palavras, marcando espaços entre uma e outra e entre as linhas e parágrafos.
E que meço com os dedos estendidos? Da ponta do dedo mínimo à ponta do polegar são mais ou menos oito polegadas. Pelo sistema métrico, uma polegada mede 2,75 cm. Este é o comprimento de um palmo, medida que, multiplicada por sete, resulta nos conhecidos sete palmos, que designam também o buraco na terra para receber a última embalagem de nosso corpo, o caixão. A primeira foi a placenta. Por isso dei o título de A placenta e o caixão a meu mais recente livro de crônicas.
A propósito, são da cantora inglesa Britney Spears esses versos: “Mantenha nossos corações batendo/ Batendo ainda/ A sete palmos/ Um funeral por todos os amores que perdemos/ Vamos enterrar o ontem/ As coisas que eu nunca disse antes/ Sempre a sete palmos”.
Para medir, mudamos o gênero do braço, passando a braça. Fizemos isso porque em latim braço é bracchium, mas como não era masculino nem feminino, era neutro na língua-mãe, ao inventarmos a medida, usamos os dois braços, e o plural neutro de bracchium é bracchia. Nos dois casos, transformamos em som de “s” aquilo que tinha som de “k”. Mas nosso plural é feito com “s” e por isso começamos a dizer “braças” e não “braça”apenas, para o plural.
Do antigo Egito, onde os hebreus viveram como escravos, trouxeram a medida denominada côvado, que, para os egípcios resultava mais ou menos em 45 centímetros. O homem foi aumentando de estatura e hoje é possível que um côvado tenha como referência 52 centímetros. Côvado veio do latim cubitus, cotovelo, designando também o antebraço. Assim, a medida era resultante da extensão do cotovelo à ponta do dedo médio.
Ao determinar a Noé o tamanho da Arca, Deus utilizou o côvado como medida: “Farás uma arca de três andares, com 300 côvados de comprimento, 50 de largura e 30 de altura. Farás o teto um côvado mais alto”.
É uma lenda bíblica, provavelmente influenciada por outro dilúvio, o de Gilgamesh. Afinal, o cativeiro dos judeus na Babilônica durou quase meio século.
Todos nós embarcamos em 2011, preocupados em medir o próximo. Com a mesma medida, seremos medidos. (xx)

• Escritor, professor, Doutor em Letras pela USP, Deonísio da Silva é Pró-reitor de Cultura e Extensão da Universidade Estácio de Sá, no Rio.

terça-feira, 21 de dezembro de 2010

OS FUZILADOS DE SOCA, NO URUGUAI

A falta que faz um WikiLeaks na América do Sul! Estou no Uruguai por uns dias. Viajo de carro. Vi a algumas dezenas de quilômetros de Montevideu uma plaquinha na estrada indicando Memorial dos Fuzilados de Soca, com saída à direita, para quem vem de Punta del Este. Estranhei que, lendo jornais todos os dias no Brasil, não tenha sabido disso. Em 1974, seis uruguaios foram sequestrados na Argentina e fuzilados na localidade de Soca. Um sobreviveu e contou a história, em 2004, trinta anos depois, mas em 1985 a Armada uruguaia já pedira perdão a um capitão de fragata, que é irmão de uma das vítimas. Amaral García, menino naquela época, é filho de uma vítimas. Em agosto deste ano os ditadores uruguaios Juan Matia Bordaberry e Gregorio "Goyo"Alvarez foram condenados por estes e outros crimes. Goyo pegou 25 anos de prisão. Está com 84. Era a tristemente famosa Operação Condor, que quase deu certo em Porto Alegre. Os gaúchos devem lembrar dos jornalistas Lilian e Gumercindo, e do Didi Pedalada, figuras do caso!

quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

ETIMOLOGIA: ALBATROZ, GLOBOSFERA, INCREMENTO, SONDAR, TULIPA.

Etimologia
Maior ave voadora do planeta, cantada no poema O Navio Negreiro pelo poeta baiano Castro Alves, albatroz teve origem no árabe al-gattás, mergulhador. Tulipa, flor cultivada atualmente até mesmo no Brasil, veio do turco tulbend, que designa também o turbante.
por Deonísio da Silva*

Albatroz: do inglês albatross, pelo francês albatros, com influência do espanhol alcatraz, pelicano. A origem remota é o árabe al-gattás, mergulhador. Designa a maior ave voadora do mundo, cujas asas chegam a medir 3,5 metros de uma ponta à outra. Tal distância é denominada envergadura. O poeta baiano Castro Alves (1847-1871) a ela se refere em O Navio Negreiro: "Albatroz! Albatroz! Águia do oceano,/ Tu que dormes das nuvens por entre as gazas:/ Sacode as penas, Leviatã do espaço!; Albatroz! Albatroz! Dá-me essas asas!".

Globosfera: de globo, do latim globus, e de esfera, do latim sphera, que, pela junção das duas palavras, passou a constituir-se como sinônimo de blogosfera, espaço da rede mundial de computadores onde jornais e revistas podem ser lidos antes ou depois de impressos, incluindo conteúdos que jamais serão publicados em papel, além de músicas e vídeos que também podem ser editados e publicados na globosfera, de que são exemplos os materiais encontrados no Youtube. O Jornal do Brasil, do Rio de Janeiro, um dos mais antigos diários brasileiros, abandonou leitores em bancas e assinantes, deixando de ser impresso, e agora está disponível apenas na Internet.

Incremento: do latim incrementum, do mesmo étimo de crescer, de excremento e de excrescência, mas nesses dois últimos justamente o prefixo "ex" muda-lhes o sentido. Designa o crescimento, visto como desenvolvimento. O poeta paulista Manuel Batista Cepelos (1868-1915), autor de poemas nacionalistas como Os Bandeirantes, usa a palavra como sinônimo de crescimento no poema O Fundador de São Paulo, em que trata de José de Anchieta (1534-1597): "Estende-se o comércio, em soberbo incremento;/ Circula como um sangue a riqueza na praça;/ E, numa rapidez superior à do vento,/ Os prelos dão à luz e o trem de ferro passa.../ E na sua modéstia e na sua roupeta,/ De repente me surge a figura de Anchieta,/ Melancolicamente apoiada a um bordão...".

Sondar: do latim subundare, ir para debaixo da onda, pelo francês sonder. Em latim, onda é unda, isto é, água em movimento. O étimo está presente em inundar, inundação. Designa ato de examinar alguma coisa para além da superfície, às vezes usando uma sonda, do francês sonde, para fazer isso. Em sentido figurado significa conhecer algo para além das aparências, procurando as profundezas. Quando uma pessoa diz que foi sondada para ser ministra da presidente eleita Dilma Rousseff (62) - fará 63 anos no próximo dia 14 -, o que quer dizer é que alguém a consultou antes de anunciar a escolha. Todavia alguns dizem que foram sondados, mas não o foram.

Tulipa: do turco tulbend ou do persa dulband, pelo latim tulipa, e daí ao holandês tulipa e ao francês tulipe. No turco e no persa, a mesma palavra designa o turbante. A flor ganhou este nome porque sua forma lembra o pano enrolado à cabeça, por homens e mulheres do Oriente, costume que passou ao Ocidente como de exclusivo uso feminino. O primeiro registro da palavra aparece em carta que o embaixador Ogier Ghiselin de Busbecq (1522-1592), mais conhecido pelo nome latino Gislenius Busbequius, às vezes Augier Ghislain de Busbecq, escreveu a Ferdinando I, da Áustria (1503-1564), quando servia na corte de Suleimã, o Magnífico (1494-1566), informando em latim, sem dizer que o sultão era poeta e tinha três mulheres, que "per haec loca transeuntibus ingens ubique florum, copia offerebatur, narcissorum, hyacinthorum et eorum quos Turcae tulipam vocant". Francisco da Silveira Bueno (1898-1989), professor da Universidade de São Paulo por décadas, faz uma ironia no verbete, que registrou na página 4112 do 8º volume de seu Grande Dicionário Etimológico e Prosódico da Língua Portuguesa: "Se o leitor não souber traduzir este latim, recorra ao vigário da paróquia". Tal recomendação engraçada era válida na década de 1960, quando a Editora Saraiva publicou a obra de quase 5000 páginas. Naquele tempo, todos os alunos do ensino médio e secundário sabiam um pouco de latim, e os padres tinham domínio dessa língua, do contrário não seriam ordenados, pois não teriam passado nos cerca de 14 anos de preparação para o sacerdócio. Poucos embaixadores saberiam latim hoje. De todo modo, o trecho citado informa que por aqueles lugares (Império Otomano), os turcos chamavam tulipa a referida flor. O diplomata era filho bastardo do senhor do castelo Busbeck, origem de seu nome, com uma amante chamada Catarina. Pesquisador e sábio, foi ele também quem levou para a Europa o lilás e a cabra angorá.
* Deonísio da Silva (62), escritor, é doutor em Letras pela Universidade de São Paulo (USP), professor, pró-reitor de Cultura e Extensão da Universidade Estácio de Sá, do Rio de Janeiro, e autor de A Placenta e o Caixão, Avante, Soldados: Para Trás e Contos Reunidos (Editora LeYa). Seus livros já foram premiados pelo MEC, Biblioteca Nacional e Casa de las Américas. E-mail: deonisio@terra.com.br

sábado, 4 de dezembro de 2010

ETIMOLOGIA

Etimologia
Expressão muito comum, conto do vigário formou-se de conto, da redução do latim computus, cômputo, cálculo, derivado de computare, contar, mas com o sentido de narrar, e de vigário, do latim vicarius, que está no lugar de outro. De vigário originou-se vigarista, que significa ladrão.
por Deonísio da Silva*

Atalaia: do árabe at-talaia, plural de talaia, lugar alto, de onde se exerce vigilância; sentinela; sobreaviso. Aparece neste trecho de Contrastes e Confrontos, obra do escritor paulista Euclides da Cunha (1866-1909): "Adensaram-se em batalhões as patrulhas errantes e dispersas dos pedestres; e avançaram ao acaso pelas matas em busca dos adversários invisíveis. Os garimpeiros remontavam às serras: espalhavam-se em atalaias; grupavam-se em guerrilhas diminutas; e por vezes os graves intendentes confessavam aos conselhos de ultramar a 'vitória de uma emboscada de salteadores' ".

Conto do vigário: de conto, da redução do latim computus, cômputo, cálculo, derivado de computare, contar, mas com o sentido de narrar, por enumerar os detalhes; e de vigário, do latim vicarius, que está no lugar de outro, que o substitui. Na hierarquia católica, designou originalmente aquele que o capítulo da diocese nomeava para substituir o bispo ou o padre em caso de morte ou transferência. No Brasil, como os provisórios são quase sempre definitivos, veio a indicar o pároco titular de uma paróquia. Antes do recente Acordo Ortográfico, era escrito "conto-do-vigário", com dois hifens, para designar o que continua designando: trapaça, engano, embuste.

Espreitar: da mistura de duas palavras latinas, spectare, olhar, observar, e explicitare, revelar com detalhes, derivado de explicare, explicar. O verbo é muito praticado pelos paparazzi, plural de paparazzo, apresentados pelo cineasta italiano Federico Fellini (1920-1993) no filme A Doce Vida (1960). Ele se inspirou no fotógrafo italiano Tazio Secchiaroli (1925-1998), que surpreendia as celebridades, clicando-as nos momentos mais inesperados, como faziam os paparazzi com a personagem vivida pela atriz sueca Anita Ekberg (79). Em 1898, o chanceler do Império Alemão, Otto von Bismark (1815-1898), fotografado no leito de morte, declarou: "Nunca se sabe se alguém vai ser fotografado ou morto por tais indivíduos".

Homofobia: dos compostos homo e fobia, vindos dos étimos gregos homos, semelhante, igual, e fóbos, medo. Designa aversão ou ódio a homossexuais, mais aos homossexuais masculinos do que às lésbicas. Num tempo em que as lutas pelas liberdades alcançaram também a opção sexual, os homofóbicos representam atraso e chegam a agredir homossexuais nas cidades, principalmente nas grandes metrópoles, praticando crimes diversos.

Vigarista: de vigário, do latim vicarius, e sufixo ista. Substantivo de dois gêneros, designa ladrão, ladra, meretriz, trapaceiro e sobretudo o autor do conto do vigário, que inventa uma história mirabolante que, apesar das complicações, tem verossimilhança. O objetivo é enganar os incautos. No livro Os Contos e os Vigários: Uma História da Trapaça no Brasil, José Augusto Dias Júnior (49), doutor em História Cultural pela Universidade de Campinas (Unicamp), em São Paulo, examina o livro Os Ladrões no Rio, publicado em 1903 pelo delegado de polícia Vicente Reis. Um falso pároco espanhol envia ao brasileiro José Martins Barbosa, de Lorena, em São Paulo, cartas em que relata que um coronel do Exército espanhol, Eduardo Martinez Castellano, por perseguição de inimigos, foi condenado à morte. Ouvido em confissão, segredou ao tal vigário que deixou uma herança de 2,45 milhões de pesetas para uma órfã chamada Luiza, de 13 anos. E, como o brasileiro foi a pessoa de melhor índole que conheceu em sua estada no Brasil, pede ao vigário que o localize e lhe confie fortuna e filha. O dinheiro está, porém, no fundo falso de uma mala embargada judicialmente. Para retirá-la, é preciso pagar as custas do processo. Também o poeta português Fernando Pessoa (1888-1935) tratou do tema. Segundo ele, a origem é o nome português Manuel Peres Vigário. Dias Júnior esclarece: "Não é necessário que Manuel Peres Vigário tenha existido ou feito o que lhe é atribuído; basta que o chiste tenha caído no gosto popular". Já o catedrático da Universidade de São Paulo Francisco da Silveira Bueno (1898-1989), em Grande Dicionário Etimológico Prosódico da Língua Portuguesa, volume 8, dá outra explicação: "A origem desta expressão estará, certamente, no espírito irreverente do povo que não leva a sério as narrações piedosas dos párocos a respeito da outra vida ou da intercessão milagrosa dos santos, etc.".
* Deonísio da Silva (62), escritor, é doutor em Letras pela Universidade de São Paulo (USP), professor, pró-reitor de Cultura e Extensão da Universidade Estácio de Sá, do Rio de Janeiro, e autor de A Placenta e o Caixão, Avante, Soldados: Para Trás e Contos Reunidos (Editora LeYa). Seus livros já foram premiados pelo MEC, Biblioteca Nacional e Casa de las Américas. E-mail: deonisio@terra.com.br

sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

WIKILEAKS, por Deonísio da Silva

Wikileaks, uma palavra composta, está na ordem do dia. Wiki, para todos, como existe a Wikipedia, uma enciclopédia livre, onde todos podem colaborar dando informações que todos podem também consultar. Isto é, todos os que têm computador e banda larga. E leak, vazar, em inglês. Significa também mijar, mas aqui o sentido é divulgar informações confidenciais. Por causa do Wikileaks, o jornalista australiano Julian Assange é notícia no mundo inteiro. Até no Brasil.
Digo até no Brasil porque em português as coisas demoram mais a chegar a todos. Aqui o palhaço Tiririca foi eleito deputado federal por São Paulo, o mais avançado estado da federação, e antes de ser diplomado teve que provar que sabe ler e escrever. É esse tipo de gente que faz leis para o cidadão leitor, eleitor ou não, cumprir!
Poucos leem em português. Dos poucos que leem temos que descontar aqueles que não entendem o que leem. As provas de ENEM, ENADE e congêneres demonstram isso com uma frequência aterradora.
Mas o que faz Julian Assange para merecer a atenção do mundo? Em dezembro de 2006, ele fundou uma organização transnacional, sediada na Suécia, que faz o seguinte: posta documentos, fotos e vídeos confidenciais vazados do mundo inteiro.
No portal da Wikileaks você encontra de tudo. Desde um vídeo que mostra soldados americanos matando de propósito civis iraquianos num ataque aéreo até a execução de civis por forças do governo que deveriam protegê-los.
Em julho de 2010, o Wikileaks irritou o governo dos EUA, especialmente a secretária de Estado, Hillary Clinton, porque vazou documentos secretos sobre a Guerra do Afeganistão.
No dia 28 de novembro deste ano, publicou um pacote de telegramas secretos de embaixadas e do governo americano. Foi quando a coisa chegou ao governo brasileiro. Pelo jeito vai sair muito mais.
Todavia já se sabe que Nelson Jobim, atual ministro da Defesa, que já declarou em público e foi gravado quando disse isso, que incrustou na Constituição alguns artigos que ninguém mais sabe quais foram, e que não foram votados, apareceu num despacho do embaixador dos EUA no Brasil dizendo que Evo Morales, presidente da Bolívia, tem um tumor no cérebro e que isso explica certas dificuldades que vem tendo para falar. Disse também que há uma briga de diplomatas no Itamaraty. Que uns são muito contra os EUA, deixando entredito que os afagos no ditador do Irã são apenas a ponta de um iceberg para outras confusões.
O Wikileaks não passa de um portal de fofocas, dizem seus críticos. Pode ser verdade, mas são fofocas que estão tirando o sono de governantes no mundo inteiro.
Bertolt Brecht, pensando sobre a guerra, escreveu estes versos: “O homem, meu general, é muito útil:/Sabe voar e sabe matar/ Mas tem um defeito:/ Sabe pensar”. Os versos estão citados no portal.
Ninguém faz nada sem gente qualificada! E entre civis, militares ou eclesiásticos, sempre haverá alguém capaz de contar o que todos queriam saber, mas era segredo guardado a sete chaves. (xx)

terça-feira, 30 de novembro de 2010

ETIMOLOGIA

Bater, verbo que tem grande número de sentidos, a ponto ocupar uma coluna inteira no dicionário Houaiss impresso, por exemplo, veio do latim vulgar battere, significando surrar. Sujar, de outro lado, teve origem em sujo, do latim succidus, úmido, molhado, gorduroso.
por Deonísio da Silva*

Bater: do latim vulgar battere, significando surrar, mas aplicando-se também a bater a massa do pão; bater a porta na cara de alguém, para impedir a entrada; bater à porta de alguém para solicitar alguma coisa; bater a falta, bater o pênalti; bater no rochedo, como as ondas; bater em Brasília, isto é, ir lá para pleitear algo; bater recorde; bater em retirada; bater na casa dos 100 anos, isto é, chegar ao centenário, como o fez o arquiteto Oscar Niemeyer (103) há três anos; bater asas, isto é, partir; bater cabeça, variante para quebrá-la de tanto preocupar-se; bater o santo, isto é, entender-se com alguém cujo gênio é semelhante ao nosso; e, em não sendo, dizer "meu santo não bate com o dele"; bater a cidade toda, isto é, procurar por todos os lugares, centro e bairros. A expressão "bateu, levou" está presente em Mil Dias de Solidão: Collor Bateu e Levou, de Cláudio Humberto Rosa, porta-voz da presidência da República no governo de Fernando Collor de Mello (61). O livro chegava aos leitores no mesmo ano em que a revista CARAS estreava no Brasil, novembro de 1993.

Livre-comércio: de livre, do latim liber, entrecasca de árvore sobre a qual se escrevia antes da descoberta do papiro; Liber era também o nome de uma divindade itálica com as funções de Baco; e de comércio, do latim commercium, de merx, mercadoria. Quando a revista CARAS estreou no Brasil, o presidente era Itamar Cautiero Franco (80), vice de Fernando Collor, a quem substituiu porque o titular tinha sido afastado em sessão conjunta do Congresso e do Supremo Tribunal Federal, em 29 de dezembro do ano anterior. Os dois são atualmente senadores. Nos Estados Unidos, o presidente Bill Clinton (64) festejava a aprovação do Tratado Norte-Americano de Livre Comércio (a sigla em inglês é Nafta) na Câmara dos Representantes, por uma vantagem superior à esperada: 234 a 200 votos. O presidente teve que contrariar os sindicalistas do Partido Democrata, pelo qual se elegera, que combateram sua iniciativa, temendo desemprego. Mais tarde, além dos Estados Unidos e do México, o Chile passou a integrar o tratado. Eleito em 3 de novembro de 1992, Clinton fez um dos melhores governos dos Estados Unidos, mas quase sofreu impeachment por ter mentido ao povo, negando que tivera relações sexuais com a estagiária Monica Levinski (37). O Senado concedeu-lhe perdão, e o povo também.

Parador: do espanhol parador, hotel oficial mantido por organismos públicos; de parado, de parar, do latim parare, preparar, tendo também o sentido de interromper. No caso, interrupção da viagem para descanso, com o fim de visitar a cidade ou a vila onde está sediado o parador. Os paradores espanhóis são hotéis especiais, cujos aposentos ocupam monumentos históricos restaurados em toda a Espanha. Faturam 245 milhões de euros por ano e empregam mais de 5000 pessoas. Foram criados em 1928. Por preços abaixo dos praticados pela rede hoteleira, o turista fica em castelos bem decorados, em que predominam o bom gosto das instalações, serviçais preparados e bem treinados, além de culinárias especiais. Em alguns deles, é possível hospedar-se e comer como um cavaleiro medieval, por exemplo. E nos quartos, despir a roupa, não a armadura, naturalmente.

Repto: de reptar, do latim reputare, refazer as contas, recalcular, ligado a putare, limpar, cortar, que é o étimo também de podar; as plantas, no sentido denotativo; as pessoas, no sentido conotativo, impondo limites semelhantes àqueles fixados para árvores, arbustos, gramas. Lançar um repto a alguém é desafiá-lo.

Sujar: de sujo, do latim succidus, úmido, molhado, gorduroso. O homem suja tudo, pois a sujeira decorre do próprio ato de existir e para isso sempre tomou providências ao longo da história, erguendo cidades à beira de rios, não apenas para aproveitar água limpa em bebidas e comidas, mas também em higiene, retirando o suor que molhava e sujava a roupa, lavando talheres e utensílios, limpando a casa. Mais recentemente, vem cuidando de limpar também os rios, as ruas, os lagos e o próprio mar, depositários de tantas impurezas. Rafael Greca de Macedo (54) assumiu a prefeitura de Curitiba quando CARAS chegava pela primeira vez às bancas de todo o Brasil e a ecologia consolidava-se como tema freqüente na mídia por causa da ECO-92. Ele disse a um grupo de moradoras que reclamavam de um rio, sujo porque havia na localidade centenas de ligações clandestinas que levavam a sujeira diretamente para o pobre rio: "O Barigui está sujo porque vocês o sujaram; rio não faz cocô".
* Deonísio da Silva (62), escritor, é doutor em Letras pela Universidade de São Paulo (USP), professor, pró-reitor de Cultura e Extensão da Universidade Estácio de Sá, do Rio de Janeiro, e autor de A Placenta e o Caixão, Avante, Soldados: Para Trás e Contos Reunidos (Editora LeYa). Seus livros já foram premiados pelo MEC, Biblioteca Nacional e Casa de las Américas. E-mail: deonisio@terra.com.br

segunda-feira, 29 de novembro de 2010

PETIÇÃO PROLIXA, SENTENÇA INJUSTA

Deonísio da Silva *

A maioria de nossos advogados não sabe escrever. Quem os denuncia são eles mesmos nas petições que protocolam. De vez em quando a sociedade, irritada, ameaça tomar alguma atitude contra eles e em defesa do direito e do idioma. Em notável autocrítica, frequentemente o Judiciário e o Ministério Público manifestam insatisfação com o estilo dos advogados. Por força dessas críticas, já houve alguns progressos, mas ainda falta muito.
Na semana passada, mais um passo relevante foi dado na direção de simplificar a aplicação do Direito. Foi lançado, no Palácio da Justiça, em Porto Alegre (RS), o Projeto Petição 10, Sentença 10, que tem apoio do Judiciário e do Ministério Público. (Zero Hora, 25/11/20, p. 14, e http://www2.tjrs.jus.br/peticao10sentenca10/index.html). Entre outras providências, o Projeto recomenda concisão em petições e sentenças, aconselhando seus autores a não usar mais do que dez páginas. Informa ainda que:
1) “A produção de 1 kg de papel consome 540 litros de água”;
2) “As plantações extensivas de eucalipto para produção de celulose esgotam os recursos hídricos, ressecando o solo e reduzindo drasticamente a biodiversidade”;
3) “O branqueamento do papel, no Brasil, é feito com o uso, entre outros produtos, de dióxido de cloro, que libera dioxinas, substâncias comprovadamente cancerígenas”.
Não é possível que para garantir a aplicação do Direito ainda se gaste tanto com impressoras, tinta e papel. E os funcionários certamente têm mais o que fazer do que cópias excessivas de calhamaços que, enxugados no estilo, dizem muito pouco a respeito dos temas que ocuparam os construtores das conhecidas Torres de Papel, cujo conteúdo é muito difícil de ser decifrado. Determinadas petições são entendidas apenas por quem as escreveu e às vezes nem por seus autores ou signatários.
No ano passado o Judiciário gastou no Rio Grande do Sul 100 milhões de folhas de papel para cumprir suas funções. Nos outros Estados não deve ter sido muito diferente, uma vez que os gaúchos são muito cuidadosos com a escrita, pois começaram cedo a aprender. Primeiro com os jesuítas, que, ainda nos séculos XVII e XVIII, ergueram naquelas plagas o complexo urbano dos Sete Povos Missioneiros, antes mesmo de o Rio Grande do Sul existir política, social e juridicamente. E nos séculos seguintes tiveram Júlio de Castilhos e os imigrantes europeus, sobretudo os alemães, que cuidaram de ter escolas e jornais em todos os lugares em que se estabeleciam.
Foram-se os tempos dos discípulos de Paulo Brossard, a quem Leonel Brizola, sem a cultura do desafeto, mas quase invencível num debate, qualificava de “Rui Barbosa em compota”. O caso é que Paulo Brossard sabia e sabe escrever bem, como demonstra ainda hoje nos artigos esparsos que publica na mídia. E Leonel Brizola sabia falar! E pouco escreveu!
Atualmente, os juízes, assoberbados com tantos processos, são obrigados a lidar com montanhas de detritos retóricos e figuras de linguagem de mau gosto, fora de lugar e de propósito, que não os ajudam a formar sua convicção. Afinal, "sentença" vem de "sentir" e, para sentir o que se passa entre os litigantes, é necessário que as petições sejam objetivas; do contrário, o juiz não sabe o que é que está sendo pleiteado.
Toda Torre de Papel acaba numa Torre de Babel. Nem o juiz entende o que está sendo reivindicado, nem as partes, depois de tantos floreios e divagações, lembram o que solicitaram.
Em resumo, faltam clareza, concisão e objetividade à maioria de nossos advogados. E esta insuficiência prejudica em primeiro lugar os seus clientes e em segundo lugar todo mundo. Pois quem paga tanto papel, tanta árvore derrubada para atendê-los? O distinto público, é claro.
Qual é a principal vítima do juridiquês? O cidadão. Exercer o direito requer os trabalhos de um advogado que o represente. Quando o advogado é incompetente, o prejudicado não é o representante, é o representado. No Judiciário, são mínimas as chances de um cidadão ser atendido quando seu advogado não é objetivo e não reivindica claramente o essencial. Fica ainda pior quando, jejuno em direito e em língua portuguesa, para disfarçar tais insuficiências recorre a floreios esquisitos, citações longas, impertinentes, fora de contexto, desnecessárias, que fazem seus autores revirarem nos túmulos.
Foram advogados grandes escritores brasileiros. Todavia, de umas décadas para cá, com o rebaixamento do ensino de língua portuguesa em quase todas as escolas de todos os níveis, temos advogados atuantes que, conquanto entendam da profissão que exercem, não a dominam com eficiência justamente porque as faculdades que cursaram não deram ao ato de escrever a importância essa profissão requer. Se não sabem escrever, é claro que também não sabem ler nem interpretar as leis que, se não as leem, deveriam lê-las. Comportam-se como Tiriricas do Judiciário.
Ainda que a Ordem dos Advogados do Brasil submeta os portadores de diploma de Bacharel em Direito a exames adicionais, ainda há muito que fazer. Os profissionais de Letras precisam ajudar o Judiciário e o Ministério Público nessa tarefa de erradicar o juridiquês, que é o analfabetismo empolado do Direito.
Talvez o STF pudesse fazer com a Suprema Corte dos EUA, que limitou o tamanho das petições entre 3.000 e 15.000 caracteres, isto é, entre duas e dez laudas, no máximo, que é exatamente a proposta agora feita pelos gaúchos.
Seria um reforço no processo de ensino e de aprendizagem de alfabetizados que, lendo menos do que devem, aumentam suas insuficiências na hora de escrever. (xx)

domingo, 28 de novembro de 2010

RIO DE BALAS, AMBULÂNCIAS E MOTOLÂNCIAS

        Vi no dispositivo eletrônico do táxi que me levava ao Galeão, no caminho Barra da Tijuca-Linha Amarela-Linha Vermelha, o aviso da cooperativa: “os motoristas podem recusar as corridas sem dar nenhuma explicação”.
        A tristeza desses dias podia ser medida por tal licença. Corridas para a Rocinha, Rio Comprido, Del Castilho, Baixada Fluminense e principalmente para a Penha, ninguém queria fazer. Eram todas recusadas. Como ficariam aquelas pessoas que precisavam com urgência de um táxi? Tomar ônibus ou vans era o maior perigo. Dezenas deles vinham sendo incendiados.
        Essa operação é o modo mais fácil de assustar os habitantes. Um jovem a serviço de traficantes desde do morro, ordena que os passageiros desembarquem, espalha gasolina ou qualquer outro líquido inflamável e risca um fósforo ou isqueiro. Pronto! Está instituído o pânico. E como pode a polícia identificá-lo? Ele é o mais competente dos guerrilheiros urbanos nessa hora. Sai dali e pega um ônibus ou van e ainda reclama de que estão incendiando os veículos de transporte, que assim não dá etc.
        O governador Sérgio Cabral e o prefeito Eduardo Paes estão com uma batata quente nas mãos. O governo federal também faz o que pode. Carros de guerra da Marinha ajudaram no policiamento.
        Quem não está no Rio, não entende muito bem o que se passa. Em primeiro lugar, há aqueles lugares que a violência parece não atingir. Parece. Moro na Barra da Tijuca, um desses bairros, e do 13º andar vi várias ambulâncias chegarem aos hospitais. Naturalmente, nem todos eram feridos de guerra, mas o número de ambulâncias era maior do que nos outros dias. E chegavam também motolâncias, neologismo nascido com o uso de motos que transportam quem está precisando de socorro médico. A maioria tem problemas de pressão, taquicardia, arrependimentos, remorsos etc, coisas do coração! Muitos se perguntam: por que ainda moro aqui?
        Um percurso que em quintas-feiras normais levaria até duas horas, nesse dia levou quarenta minutos. Da avenida Aírton Senna em diante, passando pela Linha Amarela e pela Linha Vermelha, havia poucos carros e nenhum ônibus ou van. Era aterrador. As pessoas, assustadas, não saíam de casa. Nessas horas, a televisão reina soberana, assustando mais ainda.
        As redes cumprem também, com muito esmero, a tarefa de, sem querer, auxiliar os bandidos, que acompanham pela televisão a estratégia da polícia e vão descobrindo modos de fugir do cerco. As autoridades reclamaram que os traficantes eram ajudados pelos repórteres do rádio e da televisão, mas fazer o quê? A mesma informação que serve às pessoas de bem, serve aos bandidos também.
        Não nos enganemos. Essa guerra vai demorar. Enquanto houver quem compra drogas, haverá quem as vende. E a polícia ataca apenas quem as vende. Eis um assunto mais complexo do que o Complexo do Alemão, reunião de favelas onde os fugitivos se escondiam da polícia na semana que passou e de onde vinham sendo também desalojados.(xx)
Transcrito do Primeira Página, São Carlos, SP, 28/11/2010.

quarta-feira, 24 de novembro de 2010

O SACERDÓCIO DO INTELECTUAL

por Deonísio da Silva (texto publicado em 1999, extraviado e agora encontrado)
 
É desconcertante o que vou declarar, mas facilmente comprovável. A remuneração do trabalho intelectual é quase sempre rebaixada pelos próprios membros das diversas confrarias ou comunidades.
Tomemos o caso de uma conferência, palestra ou mesa redonda. Várias vezes, participando desses eventos, refleti com meus suspensórios: aqui o único que está trabalhando de graça sou eu. O telefonema do convite foi cobrado. A Telesp, portanto, ou qualquer outra companhia telefônica, recebeu o seu bem antes de eu dizer sim ou não. O papel em que o convite foi confirmado não foi doado. Foi vendido à instituição que fez o convite. O carro que levou o conferencista ao local, rodou com combustível que não foi doado. A água mineral servida à mesa para o conferencista regar seu jardim de palavras na garganta, foi comprada. A luz que ali nos ilumina foi vendida pela Companhia Paulista de Força e Luz ou qualquer outra empresa congênere, o mesmo valendo para a força que move condicionadores de ar. A água utilizada para lavar o recinto antes e depois, não foi doada. E, é claro, as faxineiras não trabalham de graça.
Por fim, o coordenador, organizador ou ocupante de qualquer dos cargos que planejou o evento, tem um salário ou remuneração para fazer o que faz. Em geral, uma remuneração incompatível com sua qualificação, porque a mão-de-obra no Brasil é a coisa mais barata do mundo, mas é uma remuneração. Mais barata para quem recebe. Porque, para quem emprega, custa o dobro. De todo modo, não é zero.
Somente o conferencista está trabalhando de graça. Vá você, meu caro leitor, solicitar remuneração pelo seu trabalho. Se você for encanador, eletricista, faxineira, mecânico, manicure, cabeleireiro etc, se exerce enfim qualquer profissão semelhante às citadas, você será remunerado. Bem ou mal, mas será. Ninguém terá o topete de solicitar que você desentupa o banheiro, conserte uma lâmpada, limpe uma casa, arrume um carro, faça unhas ou lave o cabelo de ninguém de graça. Imagine o diálogo: “prontinho, seu cabelo ficou uma graça!” E a freguesa: “muito obrigado!” E abandone o cabeleireiro sem pagar-lhe o devido! Será um caso de histeria e de polícia.
Mas com o trabalho intelectual dá-se o contrário. A primeira dificuldade, a primeira incompreensão vem do seu colega de ofício, ou de alguém que exerça funções em áreas de domínio conexo. Os diálogos se repetem mais ou menos assim: “estamos convidando você para uma palestra no dia tal e qual, no tal lugar, às tantas horas”. E o convidado: “e o que vocês oferecem?” “Como? Não entendi! O que nós oferecemos?” “É. Quanto vou receber pelo serviço para o qual vocês estão me requisitando?”
Desconcerto e perplexidade. No fundo, os que convidam devem pensar assim: “olha a petulância e arrogância desse aí”. Sim, porque antes do convite éramos um brilhante profissional, cujas credenciais nos levaram à súbita honra de receber um convite feito por gente tão digna e chique. Mas, feita a exigência de um pagamento, ainda antes de estipular um valor, por mínimo que seja, fomos imediatamente rebaixados à condição de “esse aí”.
Pois então tendo mais o que fazer, para preservar nosso “vitae” e aperfeiçoarmos nosso ofício, a fim de não sermos mais um “desses aí”, os que me convidam, que me desculpem, mas que não tomem meu tempo e vão convidar qualquer um “desses aí”. Pois, se há tanta gente qualificada, disposta a trabalhar de graça, por que vêm eles bater justamente à porta de quem, a duras penas, se esforça para trabalhar profissionalmente?
Que espanto ser profissional no Brasil! Se o trabalho do professor ou do escritor é um sacerdócio, queremos casa, comida e roupa lavada, como os padres. E a cobertura da maior multinacional do mundo, a Igreja católica, com sedes, representações e demais instâncias em todo o universo conhecido. Sei que em qualquer lugar do mundo, um padre será bem tratado por sua Igreja. Mas um professor ou escritor, para ser bem tratado, dependerá de muitas outras sutis complexidades, entre as quais cartão de crédito e qualquer outra moeda que não seja a brasileira. Como se sabe, você não pode viajar ao exterior com nossa moeda. Só se você for para alguns países — como direi? — do nosso nível.
Ocorre, porém, uma exceção nos tais convites. Uma Nestlé, uma IBM — uma da indústria da alimentação, fazendo chocolates; outra produzindo computadores —, um Banco, uma rede de lojas, enfim, quaisquer outros profissionais que atuem em outros ramos, que não o ensino ou a dita cultura, jamais nos farão propostas tão indecorosas, como estas de trabalhar de graça.
Portanto, aviso aos navegantes desses mares: a escravidão foi abolida muito tarde entre nós, é verdade; mas já foi abolida. Em 1888. Mesmo trabalhando de graça, o escravo tinha direito a casa, comida e roupa lavada.
Então, o que propõe quem faz um convite desses? Um recuo até um pouco antes da escravidão. Aceitando a dita proposta de trabalhar de graça seríamos um pré-escravo.
Agora, me digam: não é espantoso que sejam nossos colegas de ofício os autores de propostas tão indecorosas? (xx)

terça-feira, 23 de novembro de 2010

WILSON MARTINS (1921-2010): O ARTESANATO DA CRÍTICA

Por Deonísio da Silva em 23/11/2010
A floração da inteligência brasileira vai começar. Estamos em 1550 e já começamos tarde. Perdemos meio século! Os jesuítas começam a ensinar latim no Colégio dos Meninos, em São Vicente, prosseguindo na Bahia em 1553, em São Paulo em 1554, no Rio em 1567, chegando ao Pará, no Norte, e à colônia de Sacramento, no Sul. Ensinam latim porque quem aprende latim, aprende a pensar, aprende lógica, aprende História, aprende Geografia, aprende cultura e civilização e, principalmente, aprende a ler e a escrever. Não que esse seja o caminho único, mas porque é o que melhor dominam, paradoxais homens do Renascimento e da Reforma no alvorecer do século 16, mas que servem à Contrarreforma.
Padres e letrados, ou melhor, padres letrados, plantaram a inteligência no Brasil. Ou, no dizer de Nelson Werneck Sodré, transplantaram-na. Ainda hoje a nação deve muito a ordens religiosas, masculinas ou femininas, e a igrejas confessionais e a outras religiões, o cuidado com a escola, com a cultura, sempre abandonadas pelo poder público, nos tempos monárquicos como nos republicanos, com pequenos períodos de bons tratos, nem sempre aplicados a todos os níveis de ensino. Ora se cuidava mais do ensino superior, ora do ensino fundamental, médio e secundário, como hoje se cuida mais da pós-graduação do que de todos os outros. E assim temos verdadeiros brutamontes, desprovidos de qualquer verniz cultural, com a arrogância comum a PhD’s que, às vezes, sabem da caspa e da unha encravada, ou da ponta da língua de um biguá, mas se mostram incapazes de entender o Brasil ou fazer algo relevante pelo país que proveu suas condições de estudo, aqui ou no exterior.
Para tomar coca-colaMas como começou e como se formou a inteligência no Brasil? A Editora da Universidade Estadual de Ponta Grossa acaba de relançar, acrescida de textos até então inéditos, a obra referencial de Wilson Martins, a coleção História da Inteligência Brasileira, agora em sete volumes. É a terceira edição de uma obra lançada originalmente pela Cultrix, entre 1976 e 1979, e reeditada pela T, A. Queiroz, entre 1992 e 1994. O autor, paulista de nascimento, passou a viver em Curitiba aos nove anos e na adolescência estudou em Ponta Grossa (PR), a mesma cidade que hoje sedia a universidade que ousou relançar esta obra indispensável.
Seu percurso intelectual revela sutis complexidades das vantagens propriamente de formação que recebia quem cursasse Direito antes da rude predominância das exigências do mercado sobre esse curso. Fazia-se Direito nas famílias, não com o objetivo estreito e específico de obter um emprego definido, mas como um valor absoluto na educação.
Houve um tempo, no Brasil, em que o ato de estudar não estava submetido ao mercado, como hoje. Afinal, a cultura não tem esta estreiteza que lhe querem atribuir a ferro e fogo. Você pode querer aprender mandarim para entender o universo cultural do país mais antigo do mundo, sem que tal aprendizado cumpra o objetivo de você tornar-se tradutor profissional ou professor. Naturalmente, acima do lastro cultural que a língua e sua literatura lhe darão, estará também a notável ferramenta de trabalho que o mandarim é hoje no mundo, dada a relevância da China, não apenas no mercado, mas no cenário internacional. E nem se estuda inglês para tomar coca-cola e comer hambúrguer nas viagens quase compulsórias a Disney, mas para ler e entender melhor Shakespeare, assim como o francês, o italiano, o espanhol e o alemão, ao lado de outras línguas de cultura, nos tornarão mais homens depois de lermos Proust, Dante, Cervantes, Goethe e as notáveis florações de seus companheiros de letras em todas as épocas.
Enganando o distinto públicoTanto que, concluído o curso de Direito, Wilson Martins vai fazer o curso de Letras, estudando em Paris e concluindo seu doutorado pela Universidade Federal do Paraná, a mais antiga do Brasil.
Seu saber, conquanto atento à realidade brasileira, jamais foi provinciano ou paroquial, sobretudo porque, além de leitor compulsivo, ele procurou e obteve, sem quotas e por mérito, apoios importantes para prosseguir seus estudos e pesquisas na forma de bolsas de estudos na Europa e nos EUA. E acabou por lecionar em universidades americanas, de 1962 a 1991, quando se aposentou pela Universidade de Nova York.
Por muito menos, colegas de ofício receberam da mídia os mais estabanados e exagerados destaques. Wilson Martins, não. Dada sua independência intelectual, desarrumava com frequência arranjos como esses que hoje nos querem impor, ora com um, ora com outro escritor, enganando o distinto público, ao apresentá-los como expoentes de nossas letras, quando o prestígio dos aclamados provém de razões extraliterárias.
Desastre totalFoi no exercício da docência e da crítica que Wilson Martins mais desconcertou o status quo da inteligência brasileira, isto é, dos aparelhos que a formam e constituem. Num tempo em que os turiferários de praxe na mídia queimavam incenso a pretensos críticos que, no máximo, tinham estudado a obra de um único autor, quando não um único livro do escritor escolhido, usufruindo por muitas décadas de um prestígio epocal obtido há tempos, pondo-se improdutivos para o resto de seus dias, ele estava no batente crítico todas as semanas, desde que estreara como comentarista de livros no jornal O Dia, em 1942, de lá migrando para O Estado de S. Paulo, O Globo, Jornal do Brasil e Gazeta do Povo, em Curitiba, onde viria a morrer, em janeiro de 2010.
Estão aí os sete volumes na praça. Naturalmente, as livrarias talvez os escondam lá no fundo das lojas, nas últimas prateleiras, ou, pior ainda, terão registrado nos computadores – ah, a modernidade! –, mas não os terão disponíveis quando o leitor quiser. Mas – que boa a modernidade! –, se você tem acesso à rede mundial e um cartão crédito, pode adquirir todos os volumes já, com algumas simples dedilhadas no teclado do seu computador. Será, adicionalmente, uma forma de gratidão a quem dedilhou a vida inteira para levar aos leitores a sua interpretação dos autores referenciais de nossa inteligência.
Wilson Martins faria falta a qualquer país. No Brasil, sua falta é um desastre total. Não há mais nenhum crítico em atividade. A crítica foi confinada aos minimalismos universitários, quando não à própria ignorância de mestres e alunos sobre quem tanto fez pelo Brasil.

sexta-feira, 19 de novembro de 2010

QUANTOS PAÍSES TEM O MUNDO?

A Organização das Nações Unidas (ONU) conta 191. O Banco Mundial diz que são 229. O Comitê Olímpico Internacional reconhece 202 países, e a Fifa, 209.
Mr. Miles, pseudônimo de autor das deliciosas colunas de viagem do Estadão, escreveu que um alto executivo do cartão Visa, (ele pediu para não ser identificado: onde há dinheiro, há segredo), informou que estabelecimentos de 249 países enviam, mensalmente, suas faturas para a empresa.  
Mr. Miles respondeu ao leitor que fez a pergunta: “Ora, me parece impossível inventar um país apenas para aceitar um cartão de crédito. Don’t you agree?". No pé de página, é dito que Mr. Miles é o homem mais viajado do mundo. Esteve em 132 países e 7 territórios ultramarinos. Seu texto é enfeitado com palavras do inglês. Don’t you agree (você não concorda?) não é a única expressão do latim do império. Na última  coluna, além desta, usou as seguintes: "É uma boa pergunta, my friend” (meu amigo). Lamento, however (entretanto), que ela se repita”. “Therefore (consequentemente), nunca tive a preocupação de contá-los”. “ I’m afraid (temo que), ele não tem nenhum critério”. “Nevertheless (todavia), surpreende-me o interesse das pessoas por tais pormenores”. “Oh, my God! (Oh, meu Deus!) - eu já estive em todos os países do planeta”. “Já visitei, for instance (por exemplo), a União Soviética”.  What I’m supposed to do?”. (O que eu posso fazer?) “Do you see?” (Você percebe?). “In fact, my friend, (De fato, meu amigo) nem se sabe quantos países existem. Diversas fontes confiáveis divergem sobre o tema”. “Besides England (além da Inglaterra), participam das competições mundiais a Escócia, o País de Gales e a Irlanda do Norte”.
A ONU não conta o Vaticano nem Taiwan. O primeiro é observador permanente da organização, mas está fora do cadastro. O segundo, porque a China não reconhece sua independência.
Também os territórios e as possessões não entram na lista da ONU. É o caso de Aruba e Ilhas Cayman, que são da Holanda e da Inglaterra.
Há pouco mais de cem anos, no início no século XX, havia apenas 57 países. A Áustria e o Iraque, por exemplo, surgiram depois da 1ª Guerra Mundial, com o fim dos impérios austro-húngaro e turco-otomano.
Índia, Paquistão, Moçambique e Angola, entre outros, surgiram depois da 2ª Guerra Mundial. Daqui a pouco talvez sejam países independentes a Caxemira, na fronteira com a Índia, e a Chechênia, que irrompeu no noticiário há alguns anos com as sangrentas lutas de independência, que entretanto ainda não foi alcançada.
Na década de 1990, surgiram diversos países, como  Ubequistão e Ucrânia, mas desapareceram a Iugoslávia e a República Democrática Alemã. A propósito, este escritor estava na casa do embaixador do Brasil na Alemanha Oriental quando ele passou a cônsul. O cargo de embaixador ficou com a ex-Alemanha Ocidental.
As diferenças entre os mais de duzentos países são apavorantes. Os habitantes do mais pobre, a Etiópia, ganham 90 dólares por ano. Em Luxemburgo, o mais rico, a renda mensal é de 3.661 dólares, quantia superior aos 3.330 dólares os brasileiros ganham por ano, 3.330 dólares por ano.
A China é o país mais antigo do mundo. Existe desde 1.500 a.C. Egito e Iraque existem há 3.000 anos a.C., mas não como países. Timor Leste é o caçulinha. Desmembrou-se da Indonésia entre 1999 e 2002.
 Os países estão cheios de mistérios. Esses dados dizem pouco, mas algo dizem. Nosso peso, nossa idade e onde nascemos e moramos também dizem algo de nós. (xx).

quinta-feira, 18 de novembro de 2010

ETIMOLOGIA

 

Expressão que caiu em desuso, porém está no Hino do Flamengo, ai-jesus formou-se de ai, interjeição que designa queixa e dor, mas também alegria, e de Jesus, do hebraico tardio Iexu. Já heim, que muitos dizem quando não ouvem direito o que lhes foi dito, veio do latim hem.

por Deonísio da Silva*
Ai-jesus: de ai, interjeição de origem onomatopaica, designando dor, queixa, mas também alegria, e de Jesus, do hebraico tardio Iexu, com a variante Iexua, forma abreviada de Iehoxua, Javé ajuda na salvação. No grego foi escrito Ieosous, tornado Jesus no latim, conservando a mesma grafia no português. Ai-jesus designa o queridinho, o muito amado, o xodó, o predileto. A expressão caiu em desuso, mas está no Hino do Flamengo: "Consagrado no gramado/ Sempre amado/ Mais cotado nos Fla-Flus/ É o ai-jesus". Outro verso diz: "Ele vibra, ele é fibra, muita libra já pesou". O peso dos barcos do Clube de Regatas Flamengo era medido em libras.

Hein: do latim hem, ai!, ah!, interjeição pronunciada em geral em forma de pergunta, dando a entender que a pessoa não ouviu o que lhe foi dito. Comumente expressa dor, indignação, alegria, aflição, espanto. Há controvérsia sobre a origem ser latina. Alguns defendem que seja onomatopaica, como atchim, zunzum, epa. Outros dão como origem o antigo francês ainz, radicado no latim antius, fala ou comportamento próprios da localidade de Âncio, no Lácio. Hein é semelhante a hum, hã, hem, ah!, oh! e outras interjeições de surpresa, admiração ou reprovação.

Rumor: do latim rumore, declinação de rumor, ruído, murmúrio, notícia, boato. Rumor tomou ares de notícia preocupante ainda no nascedouro da palavra porque os povos latinos dos finais da Idade do Bronze e das primeiras fases da Idade do Ferro, ainda antes da chegada das culturas clássicas da Grécia e de Roma, já acreditavam que o farfalhar do vento nas folhas das árvores, o crepitar das fogueiras e a variação nas vozes dos animais eram presságios, avisos divinos. Eram muitas as divindades que queriam ser ouvidas e elas foram disciplinadas e organizadas pela civilização romana, que as personificou em deusas, principalmente: Flora, Fauna, Ninfas. Adivinhos e profetas surgiram dessas crenças. Esses ofícios existiram e ainda persistem em várias culturas, inclusive nos tempos modernos. A página de horóscopo, de bons índices de leitura em jornais e revistas, é exemplo da certeza ou da suspeita de que forças ocultas guiam nossos destinos. Vox Populi, "Voz do Povo", denomina conhecido instituto de pesquisa de opinião. O provérbio Vox populi, vox Dei (a voz do povo é a voz de Deus) traduz interesse pela opinião pública.

Sumidade: do latim summitate, declinação de summitas, a parte mais elevada de um lugar, o cume da montanha, o alto de uma torre. Veio a designar indivíduo que se sobressai dentre a maioria por sua inteligência, talento, saber. Exemplo: Fulano é uma sumidade em Medicina, em Língua Portuguesa, para indicar que ele é quem mais sabe dentre os que sabem mais, isto é, sabe tudo. Sumiço, porém, procede do verbo sumir, do latim sumere, agarrar, roubar, esconder.

Vernáculo: do latim vernaculus, escravo ou criado nascido em Roma, radicado em verna, escravo. Passou a designar a língua de determinado lugar e mais tarde o idioma próprio de um país, sem estrangeirismos. Tais cuidados com o vernáculo não podem, porém, ser exagerados, sob pena de se tornarem ridículos, como os propostos pelo médico homeopata Antônio de Castro Lopes (1827-1901). Como odiava estrangeirismos, propôs que fossem substituídas, entre outras, as seguintes palavras: menu, por cardápio; chofer, por cinesífero; abajur por lucívelo; anúncio por preconício; cachecol por castelete; turista por ludâmbulo; repórter por alvissareiro; e futebol por ludopédio. Vagalume, que Rafael Bluteau (1638-1734) já impusera em lugar de caga-lume, por ser vocábulo obsceno, já tinha sido objeto de um concurso em Portugal para que fosse substituído e resultara em palavra bonita, que afinal pegou no gosto popular: pirilampo. Rejeitando a proposta, Machado de Assis (1839-1908) escreveu: "Nunca comi croquettes, por mais que me digam que são boas, só por causa do nome francês. Tenho comido e comerei filet de boeuf, é certo, mas com restrição mental de estar comendo lombo de vaca." De lá para cá, filet de boeuf tornou-se filé de bife e depois bife. E o francês croquette, do verbo croquer, quebrar com estalo, tornou-se croquete apenas. Os gramáticos, como o sapateiro de Apeles, não podem ir além das sandálias. À semelhança dos sexólogos, podem orientar-nos, jamais nos substituir na hora de falarmos ou escrevermos.
* Deonísio da Silva (62), escritor, é doutor em Letras pela Universidade de São Paulo (USP), professor, pró-reitor de Cultura e Extensão da Universidade Estácio de Sá, do Rio de Janeiro, e autor de A Placenta e o Caixão, Avante, Soldados: Para Trás e Contos Reunidos (Editora LeYa). Seus livros já foram premiados pelo MEC, Biblioteca Nacional e Casa de las Américas. E-mail: deonisio@terra.com.br

quarta-feira, 17 de novembro de 2010

ENEM 2010: ELES NÃO ESTÃO NEM AÍ

Por Deonísio da Silva em 16/11/2010
Era o 14º Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), passaporte para as universidades públicas ou para uma bolsa do Programa Universidade Para Todos (ProUni).
Os estudantes estavam apreensivos. Não era para menos. Em passado recente, tinha havido vazamento das provas e de dados pessoais de cerca de 11,7 milhões de estudantes que tinham feito o Enem em anos anteriores.
Veio, então, a decisão da doutora Karla de Almeida Miranda Maia, que ganhou as luzes da mídia pelo entrevero havido entre a sociedade e as autoridades educacionais. Ela suspendeu o Enem em todo o país.
A sociedade há de perguntar: e quem paga a conta? De quem foi a responsabilidade de mandar imprimir uma prova com erros tão simplórios? É preciso apurar quem foi o responsável por enviar à impressão o material com erros.
Todavia a mídia tem sido muito rigorosa com os tropeços do Inep (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais "Anísio Teixeira"), mas excessivamente generosa ou omissa com seus próprios erros. O Inep e a mídia erram pela falta que faz um revisor. Os tropeços de um e de outra não vão nos deixar de infernizar tão cedo.
O acento e o corteComo os erros do Inep já foram comentados ad nauseam, vamos refrescar a memória dos críticos da mídia. A conversa clara e o trato justo são os melhores detergentes.
Eis pequeno exemplo, recolhido de qualquer jornal, rádio ou televisão. As matérias começavam assim: "A juíza federal do Ceará Karla de Almeida Miranda Maia...". Para, para, para! Não existe juíza federal do Ceará, nem juíza federal de qualquer outro Estado da federação. E se estivesse certo, ainda assim por que não pôr vírgula depois de Ceará? Ela pode ser juíza federal no Ceará, jamais do Ceará. Muitos jornais deram a notícia corretamente: "A juíza federal no Ceará, Karla de Almeida Miranda Maia..." (alguns escreveram "Carla").
Adiante prosseguiam e, comentando a ação de Oscar Costa Filho, autor da ação que pediu a anulação do Enem, designavam o procurador da República no Ceará por "procurador federal do Ceará". E mais: "Em seu gabinete na Procuradoria Geral da República do Ceará..." (O Globo, 14/11/2010, pág. 13). O Ceará é república independente desde quando?
Ah, a falta que faz um revisor! Esse profissional não se ocupa apenas de erros de língua portuguesa. Ocupa-se de todos os erros que podem desvirtuar um texto. Desvirtuar é perder a virtus, a força. E a palavra, bem operada, é arma mais poderosa do que a espada, o revólver, o canhão, o míssil, a bomba. Do jeito que escrevem, o leitor tem todo o direito de perguntar, de matutar em dúvidas de diversa natureza. Se erraram os cargos, não erraram mais nada? O médico que diz ao cliente rouco que ele precisa fazer uma cirurgia para extirpar um "polípo" (errado) e não um "pólipo" (certo), deixa o paciente em dúvida: se o doutor errou o acento, acertará o corte?
A juíza é integrante do Poder Judiciário e o procurador da República é integrante do Ministério Público, que é assim descrito no artigo 127 da Constituição:
"O Ministério Público é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis". Aparência e essênciaOs estudantes tinham o direito de fazer provas corretamente elaboradas. Como houve erros que lhes deram prejuízos incalculáveis, o Ministério Público agiu em defesa desses "interesses sociais e individuais disponíveis", não? Pois que ainda estão disponíveis... Quando o autor dessas linhas era jovem como os atuais estudantes e precisava fazer provas, tinha pela frente um Ministério Público que ajudava a ditadura a perseguir os moços pelos simples ato de pensarem de modos diferentes dos do regime imperante. E ainda há quem tenha saudade da ditadura, valha-me Deus. Critiquemo-nos mutuamente, temos muito a melhorar nos dias que correm, mas celebremos que o fazemos em liberdade.
No âmbito estadual, atua pelo Ministério Público o promotor de Justiça da Procuradoria Geral do Estado. A chefia da instituição está a cargo do Procurador Geral de Justiça, porque não há hierarquia funcional no MP. No âmbito federal é o procurador da República, chefiado pelo procurador geral da República. O atual ocupante desse último cargo é o doutor Roberto Monteiro Gurgel Santos, nascido no Ceará e formado em Direito pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Antes de ser nomeado, foi sabatinado pelo Senado.
Não era sábado... Mas ano sabático também não é aquele ano em que você não trabalha aos sábados. As palavras enganam. Escrever é discernir, esclarecer sutilezas, pois nos detalhes mora o demônio das pequenas coisas que causa grandes prejuízos e pode derrubar um avião, como sabemos, quanto mais uma tese, quanto mais uma notícia.
Se essência e aparência fossem a mesma coisa, a ciência seria desnecessária. Roberto Gurgel, por exemplo, é muito parecido com Jô Soares, e a mídia vive brincando com as fotos de um e de outro em "separados ao nascer".
Ah, para escrever, assim como para ler, são indispensáveis sutis complexidades. [Atualizado às 14h15 de 17/11]
*** PS. Parabéns à Editora Record, que levantou a discussão do Prêmio Jabuti. O cantor e compositor Chico Buarque, nem bem lança um romance, ganha o Jabuti. Já foram três! E os escritores brasileiros? Devem lançar cedês para serem percebidos e premiados?

sábado, 13 de novembro de 2010

MONTEIRO LOBATO JÁ FOI PROIBIDO. CHAPEUZINHO E A BÍBLIA AINDA NÃO!

Tentaram proibir Monteiro Lobato! Estão sempre tentando ressuscitar a censura. Usam artifícios daqui e dali. Uma hora é o controle da mídia, outra hora é não se sabe bem que tipo de regulamentação desnecessária. O certo é que volta e meia tentam.
Desta vez prevaleceu a conhecida lei de Murphy: "Se há possibilidade de uma coisa dar errado, dará." Um sicofanta do Conselho Nacional de Educação (CNE) tentou censurar o livro Caçadas de Pedrinho, do escritor Monteiro Lobato, o verdadeiro pai da Petrobras, que esteve nos cárceres por defender que "o petróleo é nosso". Felizmente, o ministro da Educação, Fernando Haddad, atendeu a apelos e vetou o veto. Nota dez para a ABL, que desta vez reagiu e apelou ao ministro.
Haddad foi cauteloso. Nem bem irrompeu a polêmica, declarou que ia ouvir opinião de acadêmicos e educadores sobre o parecer do CNE, que considerou racista o livro. Afinal, Tia Anastácia não pode ser... negra! Nem poderia também ser escrava. Daqui a pouco proíbem também O Navio Negreiro, então. E Castro Alves fará companhia a Monteiro Lobato. Só assim para a mídia ocupar-se dos escritores brasileiros.
A caçada de uma onçaComo é habitual em desgraças, essa também começou com uma ninharia. O Estado de S.Paulo de domingo (31/10) resumiu a ópera bufa:
"A polêmica começou após Antonio Gomes da Costa Neto, servidor da Secretaria do Estado de Educação do Distrito Federal, ter encaminhando uma denúncia contra o uso do livro à Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial. A pasta encaminhou a crítica ao conselho, que deu parecer contra o uso da obra, numa votação unânime." Votação unânime! Que a mídia dê os nomes de todos os que votaram a favor da censura. Onde estão e o que fazem esses inimigos da liberdade? Não tergiversemos com eles, não!
Continua o Estadão, atualmente sob censura judicial, já que é vítima habitual de tais desmandos, tendo publicado Os Lusíadas na primeira página de muitas edições, na década de 1970, para mostrar aos leitores que estava censurado:
"Em relatório seguido de voto, a conselheira Nilma Lino Gomes concordou com as alegações encaminhadas pela denúncia. O livro, distribuído a escolas da rede no Distrito Federal e parte do programa de bibliotecas do Ministério da Educação, conta a história da caçada de uma onça por Pedrinho e a turma do Sítio do Picapau Amarelo, personagens criados por Lobato."Interpretações equivocadasA censura, de novo. Ai, meu Deus, quando nos livraremos dela? Nunca, ao que parece. Acho que vou rever minha tese de doutorado, defendida na USP em 1989, e acrescentar um outro capítulo ao livro Nos Bastidores da Censura: sexualidade, literatura e repressão pós-64. Talvez seja necessário explicar que, ao proibir 508 livros naqueles anos tormentosos, a ditadura militar fazia no atacado o serviço sujo que muitos civis queriam no varejo.
Aliás, começam recolhendo livros e depois recolhem também os autores, quem é que não sabe o enredo desse manjadíssimo filme? Quando, no governo Ernesto Geisel, o ministro da Justiça, Armando Falcão, proibiu o livro Em Câmara Lenta, de Renato Tapajós, o então secretário da Segurança (?) de São Paulo, coronel Erasmo Dias, recolheu também o autor. Mas Geisel queria a distensão, enfrentava os "bolsões sinceros, mas radicais" e o escritor foi solto.
Trechos da Bíblia, dos contos de fadas, trechos de tudo, fora do contexto, levam a interpretações equivocadas. Foi o que aconteceu. Mas não foi a última vez!
PS. Mas talvez tenham querido apenas alertar os professores para que explicassem aos alunos o contexto das narrativas. Do contrário, daqui a pouco condenam também o Visconde de Sabugosa por ser transgênico e o Sítio do Picapau Amarelo por ser improdutivo.

sexta-feira, 29 de outubro de 2010

OBRA EM CONSTRUÇÃO: ENTREVISTA AO ESTADO DE MINAS, 23/10/2010

As histórias contidas em Contos reunidos, e A placenta e o caixão, foram revisadas, ou voltaram a ser
lançadas como no original?. A seleção foi feita por você?. Qual critério usou para escolhê-las?
DEONÍSIO: Eu queria começar dizendo que os mineiros são importantíssimos na minha vida. Em setembro deste ano recebi o Prêmio Guilhermino César em Porto Alegre, dedicado a intelectuais que, não sendo gaúchos, deram contribuição cultural importante ao Rio Grande do Sul. Foi o caso de Guilhermino César, o melhor professor que já tive na vida e que me orientou na minha tese sobre a censura na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, depois aprofundada na USP com a orientação de Carlos Garbuglio. Quanto à sua pergunta, tudo foi revisado. Os contos e as crônicas, agora reunidos nos dois livros, foram escritos entre 1975 e 2010. O título do de crônicas mostra as embalagens: viemos na placenta e voltaremos no caixão. Comecei a escrever e publicar no frescor dos vinte anos. O Brasil não é mais o mesmo, o Acordo Ortográfico mudou o nosso modo de escrever, eu mesmo mudei muito, até na cor dos cabelos. O que não muda é esse doce costume de escrever. Escrevo com gosto porque sei que há gente que lê com gosto e por gosto. Há, houve, haverá sempre quem leia por gosto, como há quem coma e beba não apenas para se alimentar ou matar a sede. Não se mata a sede com um vinho de boa safra, não se lê o texto de um escritor como eu apenas para informar-se. Afinal, meus livros sempre foram reeditados, existem pessoas pelo Brasil afora que gostariam de ter uma coleção de Deonísios. Aí está na LeYa. Já saíram todos os contos e uma seleção de crônicas que os leitores dos livros ainda não viram. E com este romance começam a sair todos os outros. 

Em relação ao conto, e a crônica, como você está vendo o gênero atualmente?. Existem bons cronistas e contistas no Brasil, ou a velha escola continua predominando?. Você continua escrevendo crônicas, publica onde?
DEONÍSIO: A velha guarda continua nos jornais. Os novos estão buscando construir nichos na internet. Os textos semanais da autoria de escritores mudaram muito. Há 17 anos eu faço uma coluna de língua portuguesa na revista Caras, privilegiando o lado curioso da viagem das palavras pela história, o seu berço e às vezes o seu túmulo, o viés etimológico. Mas continuo a fazer crônicas toda semana semana, em pequenos, médios ou grandes jornais, como na década de 1970. Há quase trinta anos escrevo semanalmente no jornal Primeira Página, de São Carlos (SP), textos com a mesma qualidade daqueles que publiquei no Estadão, no Jornal do Brasil, na revista Época etc. São crônicas que o leitor de Deonísio só pode lê-las nos livros, ainda que eu seja lido por poucos naquele pequeno jornal ou em blogues e por milhões na revista Caras que vende ao redor de vinte milhões de exemplares por ano. Devo ser o escritor mais lido em barbearias, cabeleireiros, consultórios médicos, dentários, salas de espera de empresas etc. E, claro, na casa das pessoas que assinam ou compram a revista nas bancas.

Passados já tantos anos do lançamento de Avante, soldados: para trás, qual é a leitura que você, como autor, faz deste livro? No conjunto dos seus livros, como você o situa?
DEONÍSIO: O romance recebeu um prêmio importantíssimo, o Casa de las Américas, em comissão julgadora presidida por ninguém menos que o Prêmio Nobel José Saramago. E esta é sua 10a edição. Já saiu também em Cuba, na Itália e em Portugal. Mas ainda antes de ele fazer esse percurso, houve apenas uma pessoa que achou que ele era um bom romance: o autor. É o primeiro que, como Michelângelo, ordena a  seu Moisés: fala! Mas alguns livros se calam ou são calados! Avante, soldados: para trás é um romance que me deu muitos leitores e muitos amigos. E nem bem saiu essa edição o Benito Barreto me ligou de Minas para dizer que o livro o tinha deslumbrado. Receber um elogio desses do autor de Os Guaianãs é ser premiado de novo. Leitores e críticos gostam muito deste meu romance. O que eu acho do livro não pode interessar a ninguém. É um segredo, como aqueles olhares e gestos sobre os quais nada dizemos. Às vezes porque não sabemos, outra vezes porque não podemos.

Durante muito tempo você se dedicou à crítica e ao ensaio, ainda se exercita nesta área?. Como você vê a crítica hoje, ainda existe espaço para ela?
DEONÍSIO: Eu gostava daquele Brasil. Estava escrevendo e dando minhas aulas nas condições mais adversas. Um dia chegava pelo correio um livro de Carlos Herculano Lopes, de Oswaldo França Jr, de Roberto Drummond, Duílio Gomes, Cristina Agostinho, de autores conhecidos ou estreantes. Eu comprei e compro muitos livros pelo correio porque as livrarias escondem o autor nacional. Parece que eles, envergonhados ou com excesso de modéstia se esconderam em estantes confinadas lá no fundo das livrarias. Continuo minha atividade crítica, sim, na sala de aula e fora dela, na mídia. E sempre descubro autores sobre os quais pouco ou nada se diz.

Está trabalhando em algum livro novo, dá para adiantar alguma coisa?. Acha que o romance no Brasil está em alta?
DEONÍSIO: Eu estou concluindo Lotte em Petrópolis, um romance sobre a vida trágica de Stefan Zweig e de sua jovem mulher, que se suicidaram, dizem, juntos, na mesma noite de um domingo depois do carnaval de 1942. Muitos mistérios rondam a vida de todo mundo, coisas inexplicáveis, desarrumadas. O romancista arruma o mundo de outro modo para que ele seja, senão compreendido e entendido, sentido, percebido, reposto. Alguma coisa muito séria houve ali. É tempo de fazer a memória brotar para que o escritor possa examiná-la em alguns pormenores que não foram considerados. (xx)



A MULHER DE PEDRO ÁLVARES CABRAL

Estava no carro e ouvia no rádio mais uma das adoráveis crônicas do jornalista Salomão Schwartzman, já premiado pelo prestigioso Esso de Jornalismo. Ele já trabalhou no jornal O Globo e chefiou a sucursal paulista da revista Manchete. Na Rede Manchete de Televisão, ancorava o programa jornalístico Frente a Frente, que durou 11 anos. Naquela mesma emissora, idealizou e produziu Clássicos em Manchete, reunindo as principais orquestras sinfônicas do planeta. Fez para a Rádio Globo, do Rio de Janeiro, a cobertura do julgamento do criminoso nazista Adolf Eichmann. Salomão fez o curso de Ciências Políticas e Sociais, da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, experiência que lhe deu um lastro incomparável para o jornalismo.
A crônica que segue, de minha autoria, é baseada na deliciosa crônica de Salomão Schwartzman sobre Cristóvão Colombo.
A mulher de Pedro Álvares CabralPedro Álvares Cabral acabou de descobrir o Brasil. Voltou com apenas seis das treze naus com que partiu. Naufrágios, mortes, fome, sede, motins a bordo, pestes, escorbuto, vômitos, diarreias de marinheiros, mas ele ainda não viu nada. A mulher, Isabel, uma das mãos na cintura, outra num cabo de vassoura, espera o marido à porta da casa, em Belmonte.
"Que cara é essa? Não venha fingindo tristeza, cansaço, doença etc., que eu posso muito bem imaginar o que tu fizeste nessa longa viagem para descobrir uma ilha! Tanto tempo e descobres uma ilha apenas! Aquele genovês vagabundo, bêbado e doido, ficou menos tempo fora de casa e descobriu a América! A América!"
"Colombo era solteiro. Não teve mulher nenhuma para aporrinhar a vida dele! Eu sabia que por mais novas terras que descobrisse, ia ter que te dar explicações ao voltar. Só se eu não voltasse..."
"O quê?"
"Nada, não, é esta tosse danada. Eu mesmo passei vários dias na casa do caralho!"
"Deste para dizer palavrões, agora?"
"Mulher! O caralho é o mastro. A casa fica lá na ponta dele!"
"Hum! Quantas naus tinha a esquadra?"
"Treze."
"Mas por que foste escolher logo um número de azar?"
"Não escolhi. Foi o rei Dom Manuel quem formou a frota."
"A vizinha tem uma cunhada que mora em Lisboa, bem perto do cais, e disse que a partida, no dia 9 de março do ano passado, ele não viu, mas a volta, este ano, ela viu. Então, não me mintas sobre o número dos navios, hein!"
"Foram treze, sim, Belinha, foram treze!"
"Ela disse que contou sete na volta, à entrada do porto."
"É que seis afundaram!"
"Credo, homem! Perdeste a metade da frota. Sim, porque uma hora é frota, outra hora é esquadra, eu acho que um bobo que nem tu nem sabes exatamente o que comandaste."
"Quase a metade, faltou pouco. Para ser a metade, a perda teria que ser de seis e meia, a metade de treze."
"Tu e teu costume de me humilhar! Pensas que não sei fazer contas? Quem cuida da casa? Aliás, na tua ausência, dias houve em que eu não tinha nada para pôr na mesa. Nem pão brega, pão dormido ou pão do dia anterior eu tinha! E mais: a conta do padeiro, depois que atrasou dois meses, ele cortou. Não sem antes olhar bem para meu decote e perguntar: são gêmeos?"
"Gêmeos? Não entendi!"
"Tu não entendes, então, homem? O padeiro queria o meu par de seios!"
"Mas para quê?"
"Homessa, para quê? Para bulir com eles, então tu não sabes, desaprendeste?"
"Mas é perigoso!"
"Perigoso por quê?"
"Porque ele come muita melancia. E melancia com leite faz muito mal!"
"E quem disse que ele queria leite, estás tolo? Todo homem quer seio sem leite, ora bolas!"
"Não tinha pensado nisso! Muito profundo o que tu me dizes, mulher, e muito safado esse padeiro."
"E o rei, aquele pão-duro, já te pagou a viagem?"
"Mandou que eu cobrasse em especiarias. Felizmente eu trouxe muitas. Cravo, pimenta, noz, canela. Enchi cinco navios."
"Tu trouxeste tudo isso do Brasil?"
"Claro que não!"
"Mas tu não foste descobrir o Brasil?"
"É que lá eu não encontrei nada!"
"Não encontraste nada, é? Pensa que eu sou boba? A Carta de Pero Vaz de Caminha caiu na boca do povo! E o escrivão só fala em sexo e em se plantando tudo dá. Que pouca vergonha!"
"Os temperos, eu não os trouxe do Brasil, eu os trouxe das Índias! Lá morreu assassinado Pero Vaz de Caminha. E Frei Henrique de Coimbra voltou ferido!"
"Eu sabia que tu tinhas ido a outro lugar porque no paço só se fala em índias, índias, índias! E índias peladas!"
E Isabel começa a bater com o cabo da vassoura na cabeça de Pedro Álvares Cabral, o descobridor do Brasil. Mas, para ela, ele é apenas e tão somente o seu marido!