NOME DE POBRE NO BRASIL

sexta-feira, 7 de março de 2014

EU CONVERSO COM MORTOS. E VOCÊ?

A versão impressa sai domingo no Primeira Página.
Eu converso com mortos. Você também? Ou dá exclusividade aos vivos? Conte-nos sua experiência. Ainda mais agora que todo mundo é escritor, assim como todo mundo é pintor, artista etc. Quem pode ser chamado escritor ou artista? Os sinais estão sendo confundidos. Em Letras, é mais fácil identificar os impostores, mas em arte, não! Dou um exemplo. Em Bari, na Itália, em fevereiro deste ano, o artista americano Paul Branca espalhou pelo chão pedaços de jornais misturados com restos de biscoito. A exposição abriria no dia seguinte e aquela era a sua instalação. A faxineira veio fazer a limpeza e jogou tudo no lixo. O “artista” recebeu o seguro, que era de US$ 15 mil. Os mortos falam várias línguas. Este, com quem eu proseava, conversava em latim. Tinha vivido no séc. I a.C. Para quem não sabe, os séculos antes de Cristo são contados de trás para a frente. Assim, o Livro dos Mortos, escrito no séc. XV a. C., no Egito, precedeu em catorze séculos o morto com o qual eu conversava. Pois esse morto usou em Latim as palavras “jugera” e “cullea”. Notem que escrevi “esse morto”, se fosse “este” seria eu, mas eu estou vivo, então é “esse”. Escrever bem em Português é difícil. (Paulo Coelho, por exemplo, erra muito os pronomes demonstrativos). Falávamos da Itália, onde ele vivera quando vivo. Fica estranho dizer isso, mas sabemos que muitos mortos gostam de viver entre nós. Lembram-se do filme "O Sexto Sentido"? O menino diz “eu vejo pessoas mortas”. Pois eu converso com elas sem as ver, a não ser por fotografias, pinturas, daguerreótipos, estátuas, bustos etc. Na verdade, era quase só ele quem falava. Eu apenas ouvia. Como nesta crônica. Você está me lendo quieto, você não fica escrevendo no meio das minhas frases. Na fala não é assim. Tome-se o exemplo de um bom professor. Como é bom ouvi-lo apenas! Mas sempre há alunos-repolhos para interrompê-lo com perguntas desnecessárias. Esse morto – esse, hein! – não este! – me dizia que no seu tempo a Itália era coberta de tantas “arbores” (árvores) que mais parecia um “pomarium” (pomar). E que uma “jugera” (jeira, mais ou menos 0, 2 hectare) produzia dez “cullea” (cúleos) de “vinum” (vinho). Eu dormi enquanto ele falava, tática que os mortos adotam para descansar de nosso convívio ou trazer-nos um pouco para o mundo deles. Acordei e fui procurar nos dicionários o significado de cúleo. O Aurélio, o Michaelis e o Houaiss não têm cúleo, mas o Aulete, cujo organizador é meu amigo Paulo Geyger, tem. E se não tivesse, eu mesmo, que prefaciei o dicionário, iria reclamar. Cúleo era um saco de couro para guardar vinho. Cabiam nele 20 ânforas, equivalentes a 91 litros. Muito vinho, hein! Nos crimes de parricídio (quando o filho mata o pai), o cúleo era costurado com o assassino ali dentro e jogado ao mar. O nome do morto é Marco Terêncio Varrão. Morreu em 27 a.C., aos 88 anos. º escritor, colunista da Bandnews, professor (aposentado) da UFSCar (SP) e consultor das universidades Estácio (RJ) e Unisul (SC). Autor de 34 livros, entre os quais De onde vêm as palavras (17ª edição). www.lexikon.com.br

Um comentário:

  1. Deonísio, há anos que faço isto. Até registrei numa crônica que vai abaixo. É delicioso!

    CASA CHEIA

    Olha! Presta atenção! Uma nota blue! Ela fala sorrindo para o Homem. Ele não responde. Nunca responde. Mas sorri. Vai ver escutou. A poltrona onde ele deveria estar havia sido comprada depois, muito depois que ele se foi. Mas, tem certeza: ele havia de sentar-se nela, ao lado do som, ouvindo atento a harmonia requintada de Joe Pass. Ele e os outros. Quer dizer, alguns não escolheriam aquela cadeira. Iriam preferir o sofá ou, quem sabe até, iriam sentar-se em à mesa de jantar, espalhando jornais. Ou, ainda, disputariam com ela a espreguiçadeira. O Pai, com certeza faria isto. Iria usar da prerrogativa de mais velho. Logo ele. Tão moço. Mais moço do que ela é agora. São tantos os que se foram. Foi triste, muito triste, quando aconteceu. Depois, aos poucos, foram voltando. Assim, sem aviso. E as conversas continuaram do ponto em que haviam parado. E, mais que isso – ela percebia – lá no dentro dela, entendiam e se interessavam pelo que contava. Vai daí que contava. Nem tudo, pra todos. Para alguns o que tinha para contar nem ia interessar. Então selecionava. Mas às vezes era uma festa porque o que havia acontecido era tão importante que todos apareciam, distribuindo-se pela sala, atentos ao relato emocionado do acontecido. Foi assim quando nasceu a segunda neta. Contou tudo: desde a hora em que chegou esbaforida, vinda de uma reunião de trabalho, até o momento em a pegou nos braços. Vocês não podem nem imaginar! É linda! Quer dizer é feia como todos os recém-nascidos. Mas é linda! E eu, gente! Sou bis-avó. Pergunta curiosa para a Avó: o que foi que você sentiu quando eu nasci? Ela sorriu e não respondeu. Nem precisava. Perguntou só por perguntar, mas muitas e muitas vezes a Avó contara. O sorriso do Pai é de orgulho. Pudera! Ele sim! Bisavô duas vezes! Neste dia o Homem não estava. Quer dizer, estava. Havia presenciado tudo, junto a ela. Depois, muito depois, quando passou a aparecer como os outros ele, num sorriso mudo, perguntou e ela informou: está com 22 anos! Uma bela moça. Estuda medicina. Viu admiração nos olhos dele e ficou orgulhosa da neta. Uma vez ele ficou zangado e ela percebeu por que. Se ele falasse teria dito: você desmanchou o meu estúdio. É verdade. Ela fez isto, sim. Agora é um quarto de hóspedes. Responde sorrindo: logo você vai me dizer isto! Aprendi com você a dar um fim no que tem fim. Não tinha mais sentido. E eu nunca vou tocar como você. Pra que gravar? Ele se rende e a expressão significa: gostaria de dizer o contrário. Mas você nunca vai tocar bem. O Filho intervém, mudamente: você teria tocado bem se não fosse tão preguiçosa. Afinal aprendi meus primeiros acordes com você. Curiosa ela pergunta: vocês, por aí, tocam juntos? O Homem e o Filho olham para ela espantados e ela se dá conta: eles não se conhecem. Nem mesmo se escutam. Que coisa! O Pai também toca violão. Como ela. Assim, descuidadamente. Mas ele não faz qualquer comentário. Está olhando com estranheza para o micro. Ela sorri: como ele ficaria encantado em ter um. Quando se foi, ainda se usava régua de cálculo. Até para calcular logaritmo! Não se usa mais isto, não, Pai. A sua, a régua, onde anda? Sumiu como tantas outras coisas ou será que você levou quando foi? O Pai apenas sorri. Mas ela desconfia que sim. Ele não largava aquela régua. Ela volta-se para o Tio. Ele está de botas de montaria. Hermès. São botas Hermès! Lindo como sempre foi, encarrapitado no braço do sofá, implicando com a Mãe que lhe dá um piparote na cabeça. Eles nem parecem perceber a Avó, que ao lado, lê Proust e que de longe, de muito longe, fala: há que se ter vivido para ler Proust. De hoje ela responde: sabe, vó, eu hoje leio Proust. Estou mais velha do que você, não é incrível?

    O telefone toca. É um amigo: vem pra cá. O que é que você está fazendo, nesta hora, nesta casa vazia? Ela sorri. Ele não sabe de nada!

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