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sábado, 12 de julho de 2014

MEU TIO ERA FILHO ÚNICO

MEU TIO ERA FILHO ÚNICO E NENHUM DE NÓS MORREU Deonísio da Silva º É de madrugada, mas já levantei. Ele está na sala e fuma um palheiro. Abriu a janela para a fumaça ir embora, como ele fez há mais de vinte anos. Se pudesse, estaria lá fora, como sempre fez, olhando a criação que acordava com ele: o gado, os porcos, as galinhas. E os pássaros, sempre alegres ao amanhecer e sem preocupações, ao contrário dele, com muitos filhos para criar. ******* ******* ******* A mãe e ele sempre foram impelidos pelas recomendações do padre a ter os filhos que Deus mandava. Assim, viveram grandes apreensões, e as alegrias se tornaram ainda mais bissextas do que os anos. Ele me olha enquanto leio o jornal. Foi ele o primeiro a plantar em mim o gosto de começar e terminar o dia lendo: a Bíblia, o almanaque da farmácia, o anuário católico, uma bula para melhor entender um remédio e, um domingo por mês, o jornal mensal que o padre do lugar distribuía na sacristia aos interessados. Foi nesse jornal que um dia ele leu um anúncio de terras e decidiu mudar-se de Santa Catarina para o Paraná, uma ideia entretanto já lançada pelos irmãos que tinham vindo antes, sem saberem de anúncio nenhum. ***** ***** ***** “O meu filho não perdeu o costume”, ele disse calmo e sorridente, como quase sempre. Talvez por serem tantos filhos, comigo só falava na terceira pessoa. Numa das alucinações da adolescência, cheguei a pensar que era filho do meu tio. Depois ouvi uma frase muito engraçada: meu tio era filho único. “Você sempre leu muito, parece que foi o que te salvou do meu destino”, ele disse, “este passo adiante, que eu não pude dar”. “Mas deu outros”, eu disse. “Quais? Vacilar tanto antes das decisões a tomar? Não fazer nada quando achava que não havia o que fazer? O meu filho é diferente. Quando não houve o que fazer, o meu filho inventou”. ***** ***** ***** Lembramos suas frases e agora rimos juntos: “se dá de fazer, se faz; se não dá, não se faz”. A memória brota sempre! É por isso que ele e eu temos mais este ponto em comum: nenhum de nós morreu. (xx). º escritor e professor, da Academia Brasileira de Filologia, diretor-adjunto da Editora da Unisul.

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