NOME DE POBRE NO BRASIL
terça-feira, 22 de maio de 2012
SAGA DO CAMINHO NOVO: O TEMA É A INCONFIDÊNCIA MINEIRA
Despojos: a festa da morte na Corte, romance histórico cujo tema solar é a Inconfidência Mineira, quarto volume da monumental e esplêndida tetralogia Saga do Caminho Novo, do romancista mineiro Benito Barreto, 83 anos, documentou e trouxe para a prosa de ficção as lutas sociais dos brasileiros naquele que foi o primeiro sólido projeto de independência política. Sua prosa de alta qualidade rivaliza em grandeza com outra obra igualmente monumental e sobre o mesmo tema, mas em versos, que é Romanceiro da Inconfidência, de Cecília Meireles.
Prosa e poesia têm-se aproximado muito na modernidade. Já não se concebe um escritor que à la Balzac ocupe-se quase que exclusivamente em narrar, como o fizeram entre nós Erico Verissimo e Jorge Amado, sem maiores preocupações com a poesia da linguagem, obcecados apenas pelas tramas do enredo, por personagens referenciais que – isto mesmo – personificassem as ideias de interpretação social por eles defendidas.
Desta limitação, aliás, não sofre a maioria dos ficcionistas contemporâneos, mas esses se recusam ficar no traçado de um bom enredo, alicerçado em boas tramas; não o fazem por opção estética e, sim, por absoluta incapacidade de encantar os leitores com uma história que tenha começo, meio e fim bem concatenados. Passam, então, a disfarçar o que não sabem fazer com floreios desconexos, mergulhos ao redor do umbigo e obsessão por temas e modos de narrar que, além de a eles mesmos, a poucos mais interessam.
Quebra-se, então, ainda no nascedouro, um das pernas do famoso tripé autor-obra-público, sem o qual não existe literatura. Depois é fácil explicar o fracasso: fazem biscoito fino que a patuleia não sabe comer por desinformada; o editor é um incompetente; a mídia escondeu sua obra etc. (que a mídia esconde, sim, esta é uma grande verdade: esconde o que presta e satura os pobres leitores com resenhas que ninguém lê).
Dolorosa via
Eis como escreve Benito Barreto, em tudo diferente do que mais se badala em nossas páginas ditas literárias: “Tenho de meu uma trempe e formas, tacho de cobre e panelas, uns caldeirões e tabuleiro, afinal, todo o vasilhame eu tenho, pra fazer e servir o de comer de sal e doces, para vosmicê vender nas feiras e nas praças...- que tal?”.
No diálogo seguinte, reboa o pronome informal de segunda pessoa do singular, que séculos depois marcará o coloquial brasileiro: “Tirante os gastos, incluído o aluguel e o teu sustento, o teu e o meu, mais o aluguel, com as despesas, o que der de sobra, a gente racha, meia o lucro: eu banco e faço, tu me ajudas, vais às vendas e, no dia a dia ou por semana, a combinar, tirado o custo e as perdas, a sobre é nossa, se reparte...”
E adiante, a forma originalmente de segunda pessoa do plural (vosmicê) aparece já consolidada com função de segunda do singular: “E por causa de quê que, tão bonita, vosmicê tá só? –Enviuvei. – Deus do céu, o Senhor proteja suncê, Sinhá: morte morrida ou matada? – Marcada, a-quer dizer...Não quero falar disso, não”.
Benito Barreto, como o fez Cecília Meireles na poesia, conta e canta, quando ela cantou e contou, isto é, o substrato mais consistente nela é a poesia da narração e em Benito é a narração poética daquele momento singular que o Brasil do século 18 viveu pela liderança de Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes, um homem simples que afinal deu a vida por todos os outros companheiros de sublevação, incluindo o resgate da de seu traidor, Joaquim Silvério dos Reis.
Faz o prefácio Ângelo Oswaldo de Araújo Santos, escritor e prefeito de Ouro Preto. Sim, temos um escritor prefeito, não um prefeito escritor, bem entendido, pois o primeiro ofício é para sempre, o outro é passageiro, e ele, ao contrário de muitos de seus colegas nas prefeituras, sabe disso. Num texto conciso e didático, o prefaciador dá indicações preciosas para leitura:
“Ele apresenta a quarta estação da dolorosa via histórica, acolhendo o leitor na fase que sucede ao desmanche do movimento pela prisão dos cabeças, graças à rede de denúncias urdida pelo vil Joaquim Silvério dos Reis”.
Brilho em Frankfurt
Este quarto volume estrutura-se em três partes, que muito adequadamente foram denominadas Livro 1, Livro 2 e Livro 3, pois são três narrativas quase autônomas: “A Batalha do Breu”, “Um pároco na Corte”, “A festa da morte”.
Como é de praxe na História do Brasil, há um suicídio controverso. Foi assim na década de 1970 no caso do jornalista Vladimir Herzog, que volta à mídia por conta da Comissão da Verdade, recentemente instituída pela presidente Dilma Rousseff, e foi assim no caso do poeta Cláudio Manoel da Costa, figura referencial da Inconfidência, cuja morte marca um dos esplêndidos e fascinantes romances da tetralogia. Personagens históricos perfeitamente conhecidos daqueles que não são jejunos em História do Brasil contracenam com as figuras solares que a imaginação do escritor engendrou.
“Sinto-me, então, também lavado, como que passado a limpo pelas águas de março. Certa sensação de banho e limpeza apossa-se de mim, eis que algo mineral me sinto, autodemitido do meu ser, de ser, e, por momentos, sem pensar nem sentir, me deixo só, a ver e ouvir, somente, e que me ocupe e fique a ressoar em mim, como nas conchas o vago pulsar das coisas, seu metabolismo e os andamentos da matéria.”
Do desfecho do romance, à p. 580, destaco esta joia da coroa do romance de Benito Barreto:
“– Pois, pois, se mal não pergunto, pode-se lá saber o que, a vosso juízo, herdamos dele, o morto? – Matéria de aprendizado e ensino, vida afora, é o meu parecer, senhor: – foi minha resposta, acautelado em dubiedade e reticência: – ...certo é que, afora a dor e o sentimento, – ousei ainda- muita coisa há que tirar e aprender desta tragédia luso-brasileira...!”
Foi difícil encontrar o romance nas livrarias. Publicado com apoio da Lei de Incentivo à Cultura, ele precisa agora irromper do gargalo da distribuição que tantos bons livros engarrafa nesse trânsito amalucado de nossas livrarias, onde quantos piores em conteúdo e forma os livros, mais à vista estão em todos os lugares e, quanto mais refinados e de qualidade, mais escondidos.
Nenhuma força, porém, esconde de todos um bom livro todo o tempo. E em breve, não apenas esse romance, mas também os outros três, que compõem a tetralogia antológica, brilharão ao lado dos outros livros do autor, um dos baluartes mais seguros da alta qualidade da literatura brasileira que agora, com apoio de procedências diversas, ameaça finalmente reflorescer na Feira de Frankfurt no ano que vem, quando o Brasil será o país convidado de honra, mostrando-se entre 7 mil expositores e 280 mil visitantes do mundo inteiro. Que não deixemos autores como Benito Barreto de fora desses empreendimentos literários internacionais.
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[Deonísio da Silva é doutor em Letras pela USP, vice-reitor da Universidade Estácio de Sá e autor de 34 livros, o mais recente é o romance Lotte & Zweig]
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