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sexta-feira, 16 de setembro de 2016

CONTO DE DOSTOIÉVSKI AUSENTE DE SUA OBRA COMPLETA

(Correio do povo, 20.08.2016). Uma criança morre de frio na Rússia do século XIX. O conto A árvore de Natal na casa do Cristo, de Fiódor Dostoievski, não está na chamada obra completa do escritor. Todos sabem que melhor fazem os editores de Espanha e hispano-americanos que denominam “obra escogida” (obra escolhida).
O conto dá a impressão de uma história trivial. Na Rússia czarista (onde), uma criança (quem) morre (o que) de frio (como), junto com a mãe (com quem), numa noite de natal qualquer na segunda metade do século XIX (quando). Outras personagens funcionam como figurantes. Umas, da mesma condição dos outros dois morrem; outras, contrastando com seu fausto a miséria de que são vítimas as primeiras. A narrativa é feita na terceira pessoa do singular e o narrador dá a ideia de que sabe tudo a respeito dos eventos, isto é, apresenta-se como terceira pessoa onisciente. Além do mais, deixa entrever também que sabe tudo a respeito do menor abandonado, pois chega a saber até mesmo o que acontece para além de sua morte e da morte de sua mãe. O narrador que abre o conto não é o mesmo que intercepta o evento no segundo parágrafo. O indicador de mudança da voz não é a troca de cenário. Quem narra e descreve o tempo presente da criança, mais especificamente, os seus últimos momentos de vida, ao remeter o leitor para a cidadezinha anterior, de onde viera o menino, ao tempo que en passant dá um flash das migrações internas e do êxodo rural clássico, acompanhado das desilusões das luzes da cidade, opera a transformação do estilo em passe quase mágico. O tempo verbal passa do passado para o presente, ou por outra: para falar do presente, o tempo verbal escolhido é o passado; ao trocar de cenário e de tempo e falar do passado, o narrador opta pelo presente, como se pode verificar nas transcrições abaixo, onde a indica abertura do conto e b refere a mudança aludida no segundo parágrafo. a) “Havia num porão uma criança, um garotinho de seis anos de idades, ou menos ainda. Esse garotinho despertou certa manhã no porão úmido e frio. Tiritava envolto em seus pobres andrajos. Seu hálito formava, ao se exalar, uma espécie de vapor brando; ele, sentado num canto em cima de um baú, por desfastio, ocupava-se em soprar esse vapor de boca, pelo prazer de o ver se envolar. (...) Tinha se aproximado do catre, onde (...) jazia a mãe enferma. (...) A patroa que alugava o porão, tinha sido presa na antevéspera pela polícia. (...) No outro canto do quarto gemia uma velha octogenária ...” b) (...) “De lá de onde vinha era tão negra a noite! Uma única lanterna para iluminar toda a rua. As casinhas de madeira são baixas e fechadas por detrás dos postigos; desde o cair da noite não se encontrava mais ninguém fora, toda a gente permanece bem enfurnada em casa, e só os cães (...) uivam, latem durante toda a noite. Mas em compensação lá era tão quente, ao passo que aqui...” Onde, porém, não há luz, nem gente na (s) rua (s), há alimentação para o menino, que também é protegido do frio. “Lá era tão quente; davam-lhe de comer”. “Meu Deus! Se ele ao menos tivesse alguma coisa para comer!... E o frio, ah! este frio!”. O narrador resume o contexto: onde há mais gente, o menino está só; onde há mais fartura, o menino passa fome; onde há mais recursos contra a crueldade do inverno, o menino está mais desabrigado diante do frio. Disse o cidadão Dostoiévski: “Nos ambientes mais mesquinhos encontrei as maiores provas da espiritualidade humana”. Diz-nos o narrador com uma frequência que dá bem a ideia desta sua convicção, quase uma obsessão narrativa: onde deveria haver amor, há ódio, pois o filho mata o próprio pai (Os Irmãos Karamazóvi); onde deveria existir misericórdia para os velhos, os novos os trucidam sem piedade (Crime e Castigo); de quem não se pode esperar que venha bondade, o bem emerge de um jogo tese-antítese-síntese, cujo resultado final será um bom ladrão (O Ladrão Honrado); o Estado, apresentado para proteger e defender a sociedade civil, engendra um aparelho fatal que haverá de, através de práticas burocráticas totalitárias, reificar o cidadão (O Crocodilo). Esta dialética peculiar encontra na biografia do escritor o paroxismo maior. O cidadão reacionário é um escritor revolucionário; sua obra está cheia de mortes, de patologias, de crueldade, de dor, mas o que lhe cobre por inteiro é o lençol da sátira menipeia que faz do cômico um trágico e da tragédia uma comédia, tudo misturado em porções bem medidas, que somente um ficcionista que sabe inclinar-se por tais ou quais opções estéticas, é capaz de realizar. Este conto é referencial na obra de Dostoiévski, autor de uma espiritualidade de complexas sutilezas. PS. Este trabalho integra um texto maior, que contou com a orientação de meu professor, recentemente falecido, Boris Schaniderman. * Deonísio da Silva é escritor e professor. Seus livros mais conhecidos são os romances Avante, soldados: para trás (Prêmio Internacional Casa de las Américas) e Lotte & Zweig, já publicados também em outros países, e De onde vêm as palavras.

Um comentário:

  1. evoé, prof. deonísio. seria interessante comparar esse conto do Russo com o famosíssimo de andersen sobre uma criança que morre de frio na dinamarca do século 19. mesmo tempo, mesmo continente, mesmo tom de compaixão natalina pela vida mofina dos empobrecidos, desamparados e sem-remédio. ah, não ficou claro quem foi o responsável pela tradução para o português nem onde ele pode ser encontrado na íntegra.

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