NOME DE POBRE NO BRASIL

domingo, 24 de maio de 2015

ARQUIVO ABERTO Rio de Janeiro, 1974 No prédio da Light

ARQUIVO ABERTO Rio de Janeiro, 1974 No prédio da Light DEONÍSIO DA SILVA "Nada temos a temer, exceto as palavras". Este bordão, reiterado ao longo do romance como um aviso, me desconcertou ao folhear "O Caso Morel", primeiro livro de Rubem Fonseca que eu li. Era aluno do curso de letras num campus do Brasil meridional e recebi a tarefa de fazer um trabalho sobre o adultério mais comprovado do mundo. Mas desde que a americana Helen Caldwell inventara uma suposta ambiguidade em "Dom Casmurro", só se podia ler o romance de Machado de Assis com vocação para corno: diante de todas as evidências, nem sequer desconfiar. Ex-seminarista e gato de bibliotecas (não gosto da metáfora do rato), eu já tinha lido todo o Machado. Propus Rubem Fonseca, cuja obra o professor também desconhecia. E vieram o acaso e suas leis, entretanto desconhecidas, como dizem os surrealistas. Entusiasmado, o professor ordenou-me que enviasse o pequeno ensaio ao editor. Rubem Fonseca apreciou aquela heresia e me convidou para visitá-lo no Rio, dando-me o endereço: av. Presidente Vargas, 642. Ao chegar, nova surpresa. Ali era a sede da Light, templo resplandecente do capitalismo. O autor, o sumo sacerdote de uma religião que seus personagens combatiam, não se parecia em nada com eles. Mas sua extrema cordialidade me desarmou. Em poucos minutos fluía uma conversa de doidos mansos. Eu também o surpreendera. "Pensei que você tivesse uns 50 anos. Pela maturidade do que escreveu", ele me disse. O escritor tinha 49 anos; eu, 25. Era o dia 30 de julho de 1974. Quais duas rádios em serenos solilóquios, dávamos os respectivos prefixos, procurando a sintonia mútua. O aprendiz logo percebeu que o mestre era muito ardiloso, com uma sabedoria que só têm os grandes autores. Quem escolhe o autor é o leitor. E era isso que tinha acontecido. Ele nada sabia de mim, mas eu estava em desvantagem. Ele me perguntou se eu lera seus outros livros. "Não, nenhum, só este sobre o qual fiz o trabalho". Estreara havia onze anos, com "Os Prisioneiros" (1963), e tinha publicado também "A Coleira do Cão" (1965) e "Lúcia McCartney" (1967). "O Caso Morel" (1973) era seu primeiro romance. Quando autografou "A Coleira do Cão", escreveu abaixo de meu nome "crítico e ficcionista". Ponderei que não tinha publicado nenhum livro, era rigorosamente inédito. E ele: "Você é ficcionista, é crítico. Só que ainda não publicou". Por suas mãos, dali a dois anos, eu estreava com um livro de contos na mesma editora que o publicava. Às vezes, desarruma meus sentimentos a advertência que Clarice Lispector lhe fez num de nossos encontros, em 1974, depois tão frequentes: "Zé Rubem, você está ficando muito lido, isto não é um bom sinal, você preste atenção ao que eu estou dizendo". E ele, com humildade: "Eu dou muita atenção a tudo o que você me diz, Clarice". Vieram outras águas, que moveram outros moinhos. Contra a censura, recorreu ao Judiciário. O processo durou de 1976 a 1989. Venceu, mas por 2 x 1, no TRF do Rio. Por pouco, "Feliz Ano Novo" não continuou proibido. Meus trabalhos sobre a obra de Rubem Fonseca devem muito a professores que não a conheciam, como Guilhermino César, louvado num poema de Drummond. Formaram um aluno que trouxe milhares de leitores para a obra fonsequiana. Em autor de tantas complexas sutilezas, alguns livros têm mais qualidade do que outros, mas todos estão bem acima da média, sejam contos ou romances. Sartre disse: "Os críticos são guardiães de cemitérios". Talvez porque mortos não reclamem de nada. No Brasil, poucos dedicam-se a descobrir autores vivos. Esperam que cheguem a seus pés, se possível contritos, pedindo favores. O trato justo e a conversa clara são evitados. No mundo literário, predomina a confraria do elogio mútuo. A regra é apagar quem discrepa ou simplesmente desconcerta. A obra de Rubem Fonseca fez dele um autor imortal. Certo dia, um leitor distante dos centros de difusão literária descobriu seus livros por acaso, como alguns devem estar fazendo agora com outros autores.

Um comentário:

  1. Perdão por alguma rudeza nos meus comentários a uma ou outra postagem sua no Facebook. Analisando friamente penso que instintivamente minha intenção era chamar sua atenção. Admiro-o pelo que és e especialmente pelo talento e genialidade. Abraço de um conterrâneo em busca das 'luzes da ribalta'.

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