Quem de nós já não se irritou com algum tipo de embalagem? Ah, escritores românticos! Como ignorastes o cotidiano das pessoas numa sociedade que se industrializou desse modo!
É de manhã, o astro-rei espalha seus primeiros raios fúlgidos sobre a parte que lhe cabe da pátria, o torrão em que vivem você e a família que você preside, antigamente a célula-mater da sociedade e hoje a célula-mártir, tantas as preocupações que desabam sobre o lar. O seu dia nem bem começou e você já está todo atrapalhado.
Na verdade, seus atrapalhos começaram ao acordar. Você dá um pequeno tapa no rádio-relógio para que o instrumento de suplício pare de bombardear seu ouvido com aquele zuem-zuem, bip-bip ou nheco-nheco. Se você despertou com rádio ou televisão, responda depressa: por que tanta gritaria nos comerciais?
Você, enfim, levanta com o pé direito, supersticioso que é. Mas como tirar o aparelho de barbear daquele bunker em que puseram a parte que tem a lâmina? Está escrito descartável. Descartável para quem? Mais fácil os aliados destruírem o esconderijo de Hitler na Segunda Guerra Mundial do que você arrebentar o invólucro onde a gilete está escondida.
Feita a barba, você se sente glorioso: sobreviveu e está com a cara limpa. Mais daí aquela toalha da poderosa indústria têxtil que proclamou suas vantagens na televisão - você bem que, outra vez, acreditou, pois é um homem de fé e acredita em todos eles -, com a qual você acaba de enxugar o rosto, deixa aqueles ridículos fiapos sobre a sua face de brasileiro envergonhado da sociedade high tech em que vive. Sua meia desfia ao menor toque da unha. Com sua consorte, não é diferente. Ainda na caixinha, sua meia-calça já foi rasgada antes de sair dali.
Sim, é verdade que temos carros luxuosos, máquinas sofisticadas e um arsenal de leis impressionante, sendo essa Constituição uma das mais prolixas do mundo. Mas você pensa que os constituintes, que tabelaram de mentirinha os juros a 12% ao ano, poderiam fazer uma Constituição modesta e de verdade incrustando artigos que tratassem de melhorar o cotidiano dos cidadãos? Por exemplo: a tampa do dentifrício há de ser menor do que a circunferência do buraco da pia? E como ser feliz se a tampa, como a felicidade, nunca está onde nós a pusemos e sempre cai onde não queremos?
Se não nos é permitido sonhar com uma sociedade cuja Constituição garanta que todos sejam iguais perante a Lei, que pelo menos nos seja lícito exigir que as embalagens não nos façam sofrer tanto. De que serve você brilhar na sua profissão, vencendo um monte de obstáculos, se, do alto de seus saberes, você é derrotado pela caixinha de iogurte, cuja orelha, como a de Van Gogh, você extirpou na tentativa de sorver a delícia descrita em cores vivas no invólucro? Você manda a orelhinha arrebentada para a filha do fabricante como prova do incontido amor que você tem pela empresa?
Meu Deus, nossa primeira embalagem, a placenta que nos embrulhou na vinda para cá, já não era lá essas coisas. Talvez seja para compensar que enfeitemos tanto os mortos. Que o caixão, nosso derradeiro pacote, que nos levará deste para o outro mundo, sobre o qual temos muita curiosidade mas nenhuma pressa de ir, resista àqueles últimos amigos que nos haverão de carregar para a nossa última morada e também nosso último cacófato.
Já pensou se o fundo desprega e você cai no meio do corredorzinho do cemitério ou diante do altar, onde sua alma acabou de ser encomendada? O velho São Pedro, experiente, ranzinza e com estabilidade no emprego há quase dois milênios, aceitará a encomenda em embalagem assim esculhambada?
• Escritor e professor, Deonísio da Silva é Coordenador Geral de Letras e um dos Vice-reitores da Universidade Estácio de Sá. É autor de 33 livros, alguns deles publicados também em outros países e membro da Academia Brasileira de Filologia.
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