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quinta-feira, 1 de fevereiro de 2024
O HOMEM, O BURRO, O CÃO E O MACACO
Num texto antológico, um talentoso escritor baiano, Xavier Marques, autor hoje meio esquecido, diz que Deus deu apenas trinta anos ao homem quando o criou. Mas profetizou-lhe boas coisas: "Serás o senhor da Terra e o animal superior". O homem ouviu calado.
A seguir, criou o burro, dando-lhe, porém, cinqüenta anos. No destino do muar não havia dúvidas acerca dos trabalhos e sofrimentos que o esperavam: "Vais viver como escravo do homem, conduzi-lo, a ele e a todos os fardos que te puser às costas". O burro ficou inconformado: "Escravidão, cargas, privações, e viver cinqüenta anos! É muito, Senhor, bastam-me trinta".
Deus não lhe deu ouvidos e criou o cão. "Viverás trinta anos. Sofrerás açoites, mas, humilde e fiel, tens que lamber a mão que te castiga". O cão não gostou: "Vigiar dia e noite, ser açoitado, padecer fome e viver trinta anos! Não, Senhor, quero apenas dez!"
O Senhor nem ligou para o cachorro, que já começava ali a cumprir seu ingrato destino. Dependendo do dono, é claro. Deus continuou a criação e fez o macaco. "Teu ofício é alegrar o homem, arremedando-o, fazendo esgares" para "dissipar-lhe a tristeza e entreter-lhe o humor". Também o macaco quis viver menos: "Senhor, é demasiado para tão ingrato mister. Basta-me viver trinta anos".
O homem, até então calado, pede a palavra: "Vinte anos que o burro não quis, vinte que o cão enjeitou, vinte que o macaco recusa, dai-mos, Senhor, que trinta anos são muito pouco para o rei dos animais". O Senhor concordou, sob sinistras condições: "Toma-os; viverás os noventa anos, mas com uma condição ? cumprirás, em tua vida, não só o teu destino, mas também o do burro, o do cão e o do macaco".
Direito e ofensa
Conclui o narrador que assim vive o homem: até os trinta, tudo vai bem. O homem vive como homem, de acordo com o planejamento inicial do Criador. Mas quando começa a viver a quota dos animais, a coisa vai ficando complicada. "Dos trinta aos cinqüenta tem família e trabalha sem repouso para sustentá-la. É burro". Dos cinqüenta aos setenta, o homem vive como sentinela da família, defendendo-a, mas, sem poder impor sua vontade, tem apenas obrigações. Contrariado e humilhado, apenas obedece. É cão. Dos setenta ao noventa, o que ia mal, fica ainda pior. "Sem forças, curvo, trôpego, enrugado, vegeta a um canto, inútil e ridículo. Faz rir com sua gula, sua caduquice e sua própria rabugem. Sabe que não o tomam a sério, mas resigna-se e tem gosto em ser o palhaço das crianças. É macaco!"
Parodiando Xavier Marques, eis um resumo da vida do professor. Até os trinta de trabalho, alcançados entre 55 e 60 anos de vida, está no esplendor, não pára de estudar e de ensinar, sobretudo se for professor universitário. Mas dali por diante começam sérias complicações. Inicia sua jornada de burro, pois, ainda que aposentado, precisa continuar trabalhando. E para isso, é necessário um novo emprego. Se o obtém, torna-se séria ameaça aos jovens que estão chegando ao mercado de trabalho que, com razão, estranham sua presença ali. Não deveria estar descansando? Os jovens servem-se da experiência do colega mais velho, mas impõem-lhe tratamento somente dispensado a cachorros e assim mesmo por donos desalmados.
Dali por diante e até morrer, se resolve invocar a dignidade do ofício em épocas mais remotas, é tratado como palhaço ou caduco, o que dá no mesmo, pois não lhe prestam atenção. Acham que sua função é diverti-los apenas. E se vive no Brasil, sua aposentadoria deixa de ser vista como direito adquirido e passa a ser considerada suprema ofensa.
(*) texto de Deonísio Da Silva, edição 194 do Observatório da Imprensa, 16 de outubro de 2002
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