NOME DE POBRE NO BRASIL

sexta-feira, 29 de outubro de 2010

OBRA EM CONSTRUÇÃO: ENTREVISTA AO ESTADO DE MINAS, 23/10/2010

As histórias contidas em Contos reunidos, e A placenta e o caixão, foram revisadas, ou voltaram a ser
lançadas como no original?. A seleção foi feita por você?. Qual critério usou para escolhê-las?
DEONÍSIO: Eu queria começar dizendo que os mineiros são importantíssimos na minha vida. Em setembro deste ano recebi o Prêmio Guilhermino César em Porto Alegre, dedicado a intelectuais que, não sendo gaúchos, deram contribuição cultural importante ao Rio Grande do Sul. Foi o caso de Guilhermino César, o melhor professor que já tive na vida e que me orientou na minha tese sobre a censura na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, depois aprofundada na USP com a orientação de Carlos Garbuglio. Quanto à sua pergunta, tudo foi revisado. Os contos e as crônicas, agora reunidos nos dois livros, foram escritos entre 1975 e 2010. O título do de crônicas mostra as embalagens: viemos na placenta e voltaremos no caixão. Comecei a escrever e publicar no frescor dos vinte anos. O Brasil não é mais o mesmo, o Acordo Ortográfico mudou o nosso modo de escrever, eu mesmo mudei muito, até na cor dos cabelos. O que não muda é esse doce costume de escrever. Escrevo com gosto porque sei que há gente que lê com gosto e por gosto. Há, houve, haverá sempre quem leia por gosto, como há quem coma e beba não apenas para se alimentar ou matar a sede. Não se mata a sede com um vinho de boa safra, não se lê o texto de um escritor como eu apenas para informar-se. Afinal, meus livros sempre foram reeditados, existem pessoas pelo Brasil afora que gostariam de ter uma coleção de Deonísios. Aí está na LeYa. Já saíram todos os contos e uma seleção de crônicas que os leitores dos livros ainda não viram. E com este romance começam a sair todos os outros. 

Em relação ao conto, e a crônica, como você está vendo o gênero atualmente?. Existem bons cronistas e contistas no Brasil, ou a velha escola continua predominando?. Você continua escrevendo crônicas, publica onde?
DEONÍSIO: A velha guarda continua nos jornais. Os novos estão buscando construir nichos na internet. Os textos semanais da autoria de escritores mudaram muito. Há 17 anos eu faço uma coluna de língua portuguesa na revista Caras, privilegiando o lado curioso da viagem das palavras pela história, o seu berço e às vezes o seu túmulo, o viés etimológico. Mas continuo a fazer crônicas toda semana semana, em pequenos, médios ou grandes jornais, como na década de 1970. Há quase trinta anos escrevo semanalmente no jornal Primeira Página, de São Carlos (SP), textos com a mesma qualidade daqueles que publiquei no Estadão, no Jornal do Brasil, na revista Época etc. São crônicas que o leitor de Deonísio só pode lê-las nos livros, ainda que eu seja lido por poucos naquele pequeno jornal ou em blogues e por milhões na revista Caras que vende ao redor de vinte milhões de exemplares por ano. Devo ser o escritor mais lido em barbearias, cabeleireiros, consultórios médicos, dentários, salas de espera de empresas etc. E, claro, na casa das pessoas que assinam ou compram a revista nas bancas.

Passados já tantos anos do lançamento de Avante, soldados: para trás, qual é a leitura que você, como autor, faz deste livro? No conjunto dos seus livros, como você o situa?
DEONÍSIO: O romance recebeu um prêmio importantíssimo, o Casa de las Américas, em comissão julgadora presidida por ninguém menos que o Prêmio Nobel José Saramago. E esta é sua 10a edição. Já saiu também em Cuba, na Itália e em Portugal. Mas ainda antes de ele fazer esse percurso, houve apenas uma pessoa que achou que ele era um bom romance: o autor. É o primeiro que, como Michelângelo, ordena a  seu Moisés: fala! Mas alguns livros se calam ou são calados! Avante, soldados: para trás é um romance que me deu muitos leitores e muitos amigos. E nem bem saiu essa edição o Benito Barreto me ligou de Minas para dizer que o livro o tinha deslumbrado. Receber um elogio desses do autor de Os Guaianãs é ser premiado de novo. Leitores e críticos gostam muito deste meu romance. O que eu acho do livro não pode interessar a ninguém. É um segredo, como aqueles olhares e gestos sobre os quais nada dizemos. Às vezes porque não sabemos, outra vezes porque não podemos.

Durante muito tempo você se dedicou à crítica e ao ensaio, ainda se exercita nesta área?. Como você vê a crítica hoje, ainda existe espaço para ela?
DEONÍSIO: Eu gostava daquele Brasil. Estava escrevendo e dando minhas aulas nas condições mais adversas. Um dia chegava pelo correio um livro de Carlos Herculano Lopes, de Oswaldo França Jr, de Roberto Drummond, Duílio Gomes, Cristina Agostinho, de autores conhecidos ou estreantes. Eu comprei e compro muitos livros pelo correio porque as livrarias escondem o autor nacional. Parece que eles, envergonhados ou com excesso de modéstia se esconderam em estantes confinadas lá no fundo das livrarias. Continuo minha atividade crítica, sim, na sala de aula e fora dela, na mídia. E sempre descubro autores sobre os quais pouco ou nada se diz.

Está trabalhando em algum livro novo, dá para adiantar alguma coisa?. Acha que o romance no Brasil está em alta?
DEONÍSIO: Eu estou concluindo Lotte em Petrópolis, um romance sobre a vida trágica de Stefan Zweig e de sua jovem mulher, que se suicidaram, dizem, juntos, na mesma noite de um domingo depois do carnaval de 1942. Muitos mistérios rondam a vida de todo mundo, coisas inexplicáveis, desarrumadas. O romancista arruma o mundo de outro modo para que ele seja, senão compreendido e entendido, sentido, percebido, reposto. Alguma coisa muito séria houve ali. É tempo de fazer a memória brotar para que o escritor possa examiná-la em alguns pormenores que não foram considerados. (xx)



A MULHER DE PEDRO ÁLVARES CABRAL

Estava no carro e ouvia no rádio mais uma das adoráveis crônicas do jornalista Salomão Schwartzman, já premiado pelo prestigioso Esso de Jornalismo. Ele já trabalhou no jornal O Globo e chefiou a sucursal paulista da revista Manchete. Na Rede Manchete de Televisão, ancorava o programa jornalístico Frente a Frente, que durou 11 anos. Naquela mesma emissora, idealizou e produziu Clássicos em Manchete, reunindo as principais orquestras sinfônicas do planeta. Fez para a Rádio Globo, do Rio de Janeiro, a cobertura do julgamento do criminoso nazista Adolf Eichmann. Salomão fez o curso de Ciências Políticas e Sociais, da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, experiência que lhe deu um lastro incomparável para o jornalismo.
A crônica que segue, de minha autoria, é baseada na deliciosa crônica de Salomão Schwartzman sobre Cristóvão Colombo.
A mulher de Pedro Álvares CabralPedro Álvares Cabral acabou de descobrir o Brasil. Voltou com apenas seis das treze naus com que partiu. Naufrágios, mortes, fome, sede, motins a bordo, pestes, escorbuto, vômitos, diarreias de marinheiros, mas ele ainda não viu nada. A mulher, Isabel, uma das mãos na cintura, outra num cabo de vassoura, espera o marido à porta da casa, em Belmonte.
"Que cara é essa? Não venha fingindo tristeza, cansaço, doença etc., que eu posso muito bem imaginar o que tu fizeste nessa longa viagem para descobrir uma ilha! Tanto tempo e descobres uma ilha apenas! Aquele genovês vagabundo, bêbado e doido, ficou menos tempo fora de casa e descobriu a América! A América!"
"Colombo era solteiro. Não teve mulher nenhuma para aporrinhar a vida dele! Eu sabia que por mais novas terras que descobrisse, ia ter que te dar explicações ao voltar. Só se eu não voltasse..."
"O quê?"
"Nada, não, é esta tosse danada. Eu mesmo passei vários dias na casa do caralho!"
"Deste para dizer palavrões, agora?"
"Mulher! O caralho é o mastro. A casa fica lá na ponta dele!"
"Hum! Quantas naus tinha a esquadra?"
"Treze."
"Mas por que foste escolher logo um número de azar?"
"Não escolhi. Foi o rei Dom Manuel quem formou a frota."
"A vizinha tem uma cunhada que mora em Lisboa, bem perto do cais, e disse que a partida, no dia 9 de março do ano passado, ele não viu, mas a volta, este ano, ela viu. Então, não me mintas sobre o número dos navios, hein!"
"Foram treze, sim, Belinha, foram treze!"
"Ela disse que contou sete na volta, à entrada do porto."
"É que seis afundaram!"
"Credo, homem! Perdeste a metade da frota. Sim, porque uma hora é frota, outra hora é esquadra, eu acho que um bobo que nem tu nem sabes exatamente o que comandaste."
"Quase a metade, faltou pouco. Para ser a metade, a perda teria que ser de seis e meia, a metade de treze."
"Tu e teu costume de me humilhar! Pensas que não sei fazer contas? Quem cuida da casa? Aliás, na tua ausência, dias houve em que eu não tinha nada para pôr na mesa. Nem pão brega, pão dormido ou pão do dia anterior eu tinha! E mais: a conta do padeiro, depois que atrasou dois meses, ele cortou. Não sem antes olhar bem para meu decote e perguntar: são gêmeos?"
"Gêmeos? Não entendi!"
"Tu não entendes, então, homem? O padeiro queria o meu par de seios!"
"Mas para quê?"
"Homessa, para quê? Para bulir com eles, então tu não sabes, desaprendeste?"
"Mas é perigoso!"
"Perigoso por quê?"
"Porque ele come muita melancia. E melancia com leite faz muito mal!"
"E quem disse que ele queria leite, estás tolo? Todo homem quer seio sem leite, ora bolas!"
"Não tinha pensado nisso! Muito profundo o que tu me dizes, mulher, e muito safado esse padeiro."
"E o rei, aquele pão-duro, já te pagou a viagem?"
"Mandou que eu cobrasse em especiarias. Felizmente eu trouxe muitas. Cravo, pimenta, noz, canela. Enchi cinco navios."
"Tu trouxeste tudo isso do Brasil?"
"Claro que não!"
"Mas tu não foste descobrir o Brasil?"
"É que lá eu não encontrei nada!"
"Não encontraste nada, é? Pensa que eu sou boba? A Carta de Pero Vaz de Caminha caiu na boca do povo! E o escrivão só fala em sexo e em se plantando tudo dá. Que pouca vergonha!"
"Os temperos, eu não os trouxe do Brasil, eu os trouxe das Índias! Lá morreu assassinado Pero Vaz de Caminha. E Frei Henrique de Coimbra voltou ferido!"
"Eu sabia que tu tinhas ido a outro lugar porque no paço só se fala em índias, índias, índias! E índias peladas!"
E Isabel começa a bater com o cabo da vassoura na cabeça de Pedro Álvares Cabral, o descobridor do Brasil. Mas, para ela, ele é apenas e tão somente o seu marido!